Discursos

quarta-feira, 29 de maio de 2013

MEDALHA VIOLETA ARRAES DE DIREITOS HUMANOS

Dep. Luiza Erundina com a medalha Violeta Arraes e Hildegard Angel, filha de Zuzu Angel

Muito me honra e comove ser a primeira mulher a receber a Medalha Violeta Arraes de Direitos Humanos, criada pela Secretaria Estadual de Mulheres do PSB do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que o Prêmio Zuzu Angel – II Edição é conferido, pela mesma Secretaria, às bravas mulheres do grupo Tortura Nunca Mais. A elas nossos cumprimentos e gratidão pela dedicação na defesa dos Direitos Humanos.

Ao ser informada pela companheira Regina Flores, Secretária da Mulher, sobre a escolha do meu nome para  receber a Medalha Violeta Arraes,  pensei sobre o significado da homenagem e conclui que não é era a mim que devia ser prestada, mas, sim, à própria Violeta ,  inspiradora da criação deste Prêmio. É a ela, pois, a quem devemos e queremos homenagear nesta noite de festa, com toda solenidade que se possa imprimir a este ato.

Com certeza, tudo o que de mais relevante eu possa destacar da trajetória de vida dessa mulher extraordinária, já deve ser de pleno conhecimento dos que estão presentes  aqui e de tantos mais que a conheceram pessoalmente ou através dos rastos luminosos que ela foi deixando atrás de si ao longo de sua rica e fascinante existência.

No entanto, o reconhecimento e a celebração pública da grandeza e dignidade de uma pessoa, cuja vida privada se confunde com a vida pública, nunca é demais, visto que  confirmam o que já se sabe sobre ela; ao mesmo tempo conferem realidade aos feitos extraordinários  de  sua vida, iluminando-os.  É o que queremos fazer neste momento,  reconhecer e celebrar a vida e a obra de Violeta Arraes que marcaram indelevelmente seu tempo e sua geração.

Violeta dedicou inteiramente sua vida às lutas pelos direitos humanos e na defesa da democracia; lutas essas que ela travou sem fronteiras, com muita coragem e determinação e no limite máximo de sua generosidade.
Cearense do Araripe, veio ao mundo em 5 de maio de 1926 e foi uma das figuras mais atuantes e influentes nos meios acadêmicos da sua época, projetando-se publicamente dentro e fora do Brasil por sua presença ativa no mundo da cultura e das artes e pelo seu engajamento político.

Em Recife, Violeta foi ativista do movimento de educação de base; atuou no Movimento de Cultura Popular, junto com o educador Paulo Freire, e colaborou com D. Hélder Câmara, enquanto membro do Secretariado Nacional da Ação Católica e integrante da Juventude Universitária Católica (JUC), de onde se originaram grupos de ação política que combateram o golpe de 64 e resistiram à ditadura civil-militar; por isso foram duramente perseguidos e dizimados.

Ligada ao Cinema Novo e ao meio artístico e cultural pernambucano, no período em que junto com o marido Pierre Maurice Gervaiseau, economista e militante socialista, Violeta colaborou com a ação política do seu irmão, o então governador de Pernambuco, Miguel Arraes, deposto e preso em 1º de abril de 1964, no golpe militar. Ambos foram presos quando chegavam à sede do Arcebispado para visitar D. Hélder Câmara no dia em que ele assumia como bispo de Recife e Olinda. Quatro meses depois, ela e sua família foram expulsos do Brasil e se exilaram  na França onde, a partir de então,  passaram a viver. 

O castigo do exílio que os algozes da ditadura lhe aplicaram, não conseguiu fazer com que Violeta arrefecesse o ânimo, nem abdicasse de seus sonhos e da utopia socialista  que iluminaram e deram sentido à sua vida. Esta é uma marca da sua origem nordestina, região onde se forjam homens e mulheres fortes que não se dobram diante das agruras da seca e do sol inclemente do semiárido, nem menos se vergam sob a opressão covarde de um regime de força que dominou pelas armas durante longos e tenebrosos vinte e um anos de ditadura e de graves violações aos direitos humanos em nosso país.

Na França, já graduada em sociologia, cursou pós-graduação em psicologia para poder ajudar, como psicoterapeuta, a muitos exilados brasileiros traumatizados com a tortura a que foram submetidos.  Por sua generosidade e dedicação no acolhimento aos exilados políticos na França, ficou conhecida como a “Rosa de Paris”.

Como integrante da Frente Brasileira de Informações, naquele país europeu, Violeta, segundo testemunho de ex-exilados, foi fundamental para a denúncia dos crimes contra os direitos humanos cometidos pela ditadura militar e, como estava acima das divisões entre partidos e grupos políticos, conseguia aglutinar todos e a todos ajudava a suportar as terríveis agruras do exílio. Sua casa em Paris se transformou em uma referência para artistas e intelectuais perseguidos pelo regime militar. Também estendeu sua ajuda aos exilados chilenos, após o golpe de Pinochet, e ao movimento anticolonialista em Angola, Moçambique e Guiné Bissau.

Com a aprovação da Lei da Anistia em agosto de 1979, Violeta retornou ao Brasil, mas foi convidada a trabalhar como adida ao projeto França-Brasil, na embaixada brasileira em Paris. De 1984 a 1986, ela se dedicou a elaborar e desenvolver o projeto, realizando vários eventos relevantes, destacando-se, entre outros, a Exposição de Arte Popular Brasileira, no Museu de Arte Moderna. Em 1988, a convite do então governador Tasso Jereissati, assumiu a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará e, em 1996, foi nomeada reitora da Universidade Regional do Cariri, na cidade do Crato, cargo que exerceu até 2003. Viveu os últimos anos de sua rica existência na cidade do Rio de Janeiro, onde veio a falecer em 2008. No entanto, Violeta continua viva, não só nas nossas mentes e nos nossos corações, mas sobretudo no exemplo que deixou, exemplo de  coragem e de fidelidade absoluta ao seu  compromisso  com os direitos humanos e com a democracia.

Para que a história de uma pessoa se revele em toda sua inteireza, é preciso que seja projetada no espaço público, sobretudo se for mulher, e, como tal, historicamente condenada a viver submersa na invisibilidade da vida privada, por determinação de uma cultura machista e patriarcal ainda hoje dominante na nossa sociedade. Violeta Arraes é uma mulher que rompeu com esse padrão e protagonizou os acontecimentos mais importantes e cruciais da vida nacional, com desdobramentos para além de nossas fronteiras.

Vale destacar, ainda, o simbolismo e o significado da Medalha Violeta Arraes de Direitos Humanos que projeta, no espaço público, a figura gigantesca dessa mulher excepcional. Esta homenagem é prestada num momento decisivo para a história e a democracia brasileira. Ocorre exatamente no momento em que, após longos e aflitivos anos de espera, o Estado e a sociedade civil brasileira buscam resgatar a memória e desvelar a verdade histórica sobre os crimes de lesa humanidade cometidos durante a ditadura militar, e apontar os responsáveis por eles, para que não fiquem impunes. Trata-se, portanto, de fazer justiça, mas para isso é preciso dar nova interpretação à Lei da Anistia que, absurdamente, anistiou vítimas e algozes.

Se viva ainda estivesse, não tenhamos dúvidas de que Violeta estaria na linha de frente deste embate entre o passado, que quer ser esquecido, e o presente que grita, em dores de parto, para que a Verdade se revele por inteiro e se faça justiça aos que, como Violeta Arraes, pagaram com prisão, tortura, assassinato, desaparecimento forçado e exílio a incipiente democracia que temos hoje. Precisamos, de uma vez por todas, passar a limpo essa vergonhosa página da nossa história, e como diz a ex-presidente do Chile, Michele Bachelet, “a ferida só sara se for lavada”. É este o momento. A hora chegou, não a deixemos escapar.

Por fim, agradeço de coração a honra de me conferirem esta Medalha que me servirá de escudo e de estímulo para continuar a luta de Violeta Arraes, e de tantos outros, na defesa intransigente dos Direitos Humanos e na luta sem trégua por Verdade, Justiça e plena Democracia.
Obrigada a todos e todas.
                                                                                     Rio de Janeiro, 27 de maio de 2013

                                                                                        Dep. Luiza Erundina de Sousa

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Por uma autêntica interpretação da Lei da Anistia

Antes de tudo, é preciso esclarecer não se tratar de revisão da lei nº 6.683/79, a Lei da Anistia. Mas, dar interpretação autêntica ao disposto no art. 1º, § 1º da referida lei, segundo a qual declaram-se conexos aos crimes políticos, objeto da anistia concedida pela lei, "os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política".

É no sentido de dar nova interpretação ao que dispõe o art. 1º § 1º da lei que apresentei o projeto de lei 573/2011, que define no art. 1º que "não se incluem entre os crimes conexos, definidos no art. 1º § 1º da lei nº 6.683/1979, os crimes cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos".

A aprovação desse projeto é condição para efetivo cumprimento à sentença condenatória do Estado brasileiro, proferida em 24/11/2010 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Assim, é dever do Brasil cumprir integralmente a decisão.

Ao julgar a ação proposta pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que questionava se a lei nº 6.683/1979 de fato anistiou agentes do Estado que cometeram crimes de tortura, assassinatos e desaparecimentos durante o regime militar (1964-1985), o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu manter a interpretação atual da Lei da Anistia e impedir que os responsáveis por crimes contra opositores políticos sejam processados, julgados e punidos.

O relator do processo, o então ministro Eros Grau, deu parecer contrário à revisão da lei, argumentando que ela teria sido "amplamente negociada". Convém lembrar, no entanto, as condições em que tal acordo se deu. Os militares ainda tinham o controle do poder e a sociedade civil dava os primeiros passos na reconstrução da democracia no país.

Por entender a imperiosa necessidade de reinterpretação da Lei da Anistia para que se conheça a verdade sobre os crimes da ditadura e os responsáveis por eles não fiquem impunes, apresentei o mencionado projeto de lei, que se encontra na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, aguardando votação.

No momento, ocorre intensa discussão da matéria pela sociedade, particularmente pelos setores mais diretamente interessados, os Comitês Memória, Verdade e Justiça, criados e funcionando na maioria dos Estados brasileiros, além das Comissões da Verdade das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, que se manifestam favoravelmente à aprovação do projeto de lei.

Recentemente, alguns membros da Comissão Nacional da Verdade também se declararam favoráveis à reinterpretação da Lei da Anistia, para que os crimes cometidos por agentes do regime militar sejam punidos. Tal manifestação representa um avanço, considerando-se que a lei nº 7376/2010, que criou a comissão, limita seus objetivos ao resgate da memória e revelação da verdade histórica sobre as graves violações aos direitos humanos ocorridas no período da ditadura militar.

Assim, fica claro que esses limites e determinações legais precisam ser superados, com vistas a possibilitar a justiça de transição. Para tanto, se impõe a aprovação do projeto de lei 573/2011, que dá interpretação autêntica à Lei da Anistia.

A mesma instituição --Congresso Nacional-- que aprovou a lei nº 6.683/1979, numa conjuntura e correlação de forças adversas, tem o poder e a prerrogativa de aprovar um outro diploma legal que atenda aos reais anseios da sociedade brasileira, ou seja, ver completado o processo de redemocratização e a plena consolidação da democracia no país.

*Publicado originalmente na seção Tendência e Debate na Folha de São Paulo em 25/05/2013