Comissão de Ética Pública
XIV Seminário:
Ética na Gestão: Ética, Democracia, Justiça e Mobilização Social
Painel 6 – Respeito aos Direitos Humanos: Uma Análise Ética
É muito
importante que num evento como este seja pautada a discussão sobre os direitos humanos,
quando se comemoram os 65 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da
Organização das Nações Unidas (ONU).
Esta é
uma oportunidade para o Estado brasileiro, por meio do seu Governo, do
Parlamento e do Poder Judiciário, reafirmar seu compromisso com a promoção e
proteção dos direitos humanos de todos os brasileiros e brasileiras, como um
imperativo ético de todo estado democrático de direito.
A
reiteração desse compromisso se impõe neste momento, quando se comprova o
agravamento da situação de flagrante desrespeito a esses direitos em nosso
país.
Neste
nosso esforço de reflexão sobre o tema temos que ir além de uma abordagem no
plano teórico que, certamente, já foi feita pelos expositores dos painéis
anteriores a este, e, sem dúvida, com mais competência e autoridade.
Assim,
vou focar minha intervenção na realidade atual em relação aos direitos humanos
no Brasil, numa perspectiva ética e política, a partir da necessidade de
compreendê-la para poder modificá-la. Este, certamente, deve ser um dos
objetivos deste Seminário.
Ao
iniciarmos a pesquisa para este trabalho verificamos a insuficiência dos dados
disponíveis por estarem incompletos, fragmentados e desatualizados, tanto os
referentes ao âmbito nacional como ao regional, o que, por si só, representa
uma grande dificuldade para se chegar a um diagnóstico indispensável à
elaboração de políticas públicas voltadas aos direitos humanos, bem como para a
definição de estratégias com vistas ao enfrentamento e a intervenções
concretas, no sentido de modificar a realidade dos direitos humanos no nosso
país.
Consultamos
diversas fontes oficiais de dados, como o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a Secretaria
de Direitos Humanos da Presidência da República, o Ministério da Justiça, a Secretaria
de Política para as Mulheres da Presidência da República, a Fundação Nacional do
Índio (Funai) e organizações não-governamentais (ONGs), tais como, o Conselho Indigenista
Missionário (CIMI) e o Grupo Gay da Bahia.
Porém,
esses dados estão dispersos, referentes a distintos e curtos períodos de tempo,
não integrados entre si e sem sistematização. A própria dimensão continental do
país e a grande diversidade e especificidades regionais são desafios a superar
na compreensão da realidade, na elaboração de políticas de direitos humanos e no
planejamento da intervenção sobre as mais variadas e complexas situações. Registre-se,
também, que essa dificuldade se insere entre os inúmeros problemas relacionados
ao conhecimento e à compreensão sobre a realidade dos direitos humanos no
Brasil. É verdade que no atual governo federal existem iniciativas concretas e
um real esforço para a superação dessa dificuldade.
Passamos
a mostrar alguns indicadores que comprovam a gravidade da situação de violações
aos direitos humanos no nosso país, como sinalizamos antes.
Vejamos:
Assassinatos
no Brasil
|
ASSASSINATOS
|
NEGROS
|
JOVENS
|
MULHERES
|
2011
|
49.309
|
100%
|
35.207
|
71,4%
|
18.436
|
37,4%
|
4.512
|
9,15%
|
2010
|
49.203
|
100%
|
34.983
|
71,1%
|
18.744
|
38,1%
|
4.465
|
9,07%
|
2009
|
48.579
|
100%
|
33.533
|
69%
|
18.510
|
38,1%
|
4.260
|
8,76%
|
OBS: o número total de
assassinatos pode ser maior. Estudo do Ipea revela que entre 1996 e 2010 (15
anos) quase 130 mil assassinatos não foram contabilizados no Brasil, pois
mortes violentas registradas como “causas indeterminadas” são, na
verdade, homicídios.
|
Fonte:
Ministério da Saúde
Assassinatos de
indígenas (Dados
referentes a 2012)
|
ESTADO
|
Nº DE VÍTIMAS
|
MATO GROSSO DO SUL
|
37 (61,6%)
|
MARANHÃO
|
7
|
BAHIA
|
4
|
PARANÁ
|
2
|
PARAÍBA
|
2
|
PARÁ
|
2
|
RORAIMA
|
2
|
SANTA CATARINA
|
1
|
ALAGOAS
|
1
|
MATO GROSSO
|
1
|
RONDÔNIA
|
1
|
TOTAL DE VÍTIMAS
|
60
|
Importante: o Censo Demográfico realizado pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010 identificou
817 mil pessoas que se declaram indígenas no Brasil, 0,42% do total da
população brasileira.
|
Fonte:
Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
Assassinatos
de homossexuais* (Dados referentes a 2012)
|
Total de assassinatos
|
Homens homossexuais
|
Travestis
|
Lésbicas
|
Bissexuais
|
337
|
188
|
128
|
19
|
2
|
100%
|
55,62%
|
37,7%
|
5,62%
|
1,06%
|
*Fonte: Grupo Gay da Bahia
Crianças e adolescentes* (Dados referentes a 2012)
|
Agressões
|
130.029 denúncias de
agressões contra crianças e adolescentes, o que representa 77% do total das
denúncias do Disque 100 da SDH.
|
Crianças
desaparecidas
|
De acordo com a SDH,
estima-se que 10 mil ocorrências de desaparecimento de crianças e
adolescentes sejam registradas por ano nas delegacias de política de todo o
país.
|
Segundo a própria SDH,
somente em 2012 foi criado um cadastro nacional, e até hoje não há
informações precisas sobre os números reais.
|
*Fonte: Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República
Mulheres*
Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006)
|
Casos
de estupros de mulheres
|
ANO
|
Nº DE
ESTUPROS
|
MÉDIA
|
2011
|
42,8
MIL CASOS
|
22,1/100
MIL HABITANTES
|
2012
|
50,6
MIL CASOS
|
26,1/100
MIL HABITANTES
|
Denúncias
de agressões
|
§ 41.411 denúncias de
agressão no Ligue 180 em 2012.
§ Mais de 677 mil ações
contra agressores em 7 anos de Lei Maria da Penha.
§ Até 2009 eram 400 mil
ações. Dessas, foram proferidas 80 mil (20%) sentenças definitivas e 9 mil (2%) prisões provisórias ou em
flagrante.
|
*Fonte:
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Presídios*
(Dados referentes a 2012)
|
Superlotação
nos presídios
|
Ano
|
Pop.
carcerária
|
2011
|
514.582
presos
|
2012
|
549.577
presos
|
§ De 1992 a 2012, a
população carcerária mais que sextuplicou, enquanto a população do país
cresceu 1/3.
|
*Fonte:
Ministério da Justiça
É
paradoxal que esse quadro de flagrante e reiterado desrespeito aos princípios e
fundamentos relacionados aos direitos humanos conviva com um marco legal e
normativo, tanto no plano nacional como no internacional, que representa reais
avanços. Esse descompasso precisa ser corrigido, exigindo uma resposta
competente do Estado e de setores da sociedade civil, organizados em defesa dos
direitos humanos e da promoção dos mesmos, para que iniciativas como a deste
Seminário não fiquem em meras afirmações retóricas sem efeitos práticos no
cotidiano da população vítima da violação de seus direitos.
Esta é,
sem dúvida, uma questão essencialmente política, com clara dimensão ética, de
responsabilidade do Estado, e também de toda a sociedade com vistas à promoção
e defesa dos direitos humanos; e que deve levar em conta, não apenas os casos
específicos de afronta a esses direitos, mas, sobretudo, procurar identificar e
compreender as causas estruturais e as condições objetivas em que tais violações
de direitos ocorrem, no sentido de combatê-las e preveni-las.
Quanto
ao aspecto econômico, é preciso reconhecer que houve significativa melhora, contudo,
ainda permanece forte concentração de renda e da propriedade da terra no campo
e no meio urbano, além de um sistema tributário altamente repressivo e,
consequentemente, injusto.
O
aspecto social, por sua vez, caracteriza-se pela desigualdade, não obstante a
inclusão de grande contingente populacional às condições básicas de existência,
graças ao programa de assistência social; ao crescimento do trabalho formal, o
aumento real do salário mínimo e amplo acesso à educação fundamental. No
entanto, segundo o IBGE, 13,2 milhões de pessoas são analfabetas, o equivalente
a 8,7% da população com 15 anos ou mais.
Outro
dado significativo é o IDH brasileiro de 2012 que é menor do que a média dos
países da América Latina e Caribe. O país está na posição 85ª do ranking, que
leva em conta a expectativa de vida, o acesso ao conhecimento e a renda per capita, segundo o Pnud.
Outrossim,
a saúde pública apresenta grande precariedade, o que contribui para a
proliferação de planos privados de saúde, com serviços também precários e que onera
o orçamento das famílias da classe média.
Em razão do alto preço da terra urbana e dos baixos salários, o déficit
habitacional é muito elevado, não obstante o programa “Minha Casa, Minha Vida”
do governo Dilma Rousseff. Além disso, ocorre forte crescimento de favelas,
cortiços e casas precárias na periferia das grandes cidades.
Outro direito que vem sendo desrespeitado é o da mobilidade, agravado
com a enorme concentração populacional nos grandes centros urbanos e regiões
metropolitanas e por falta de política pública para garantir o transporte
coletivo aos usuários desse serviço, sobre quem recai os elevados custos. Com a
prioridade para o transporte individual, o tráfego vira um caos, além do
aumento de acidentes e da violência no trânsito.
Outrossim,
o Brasil é o quarto país do mundo em população carcerária. Está atrás de E.U.A,
Rússia e China. Levantamento do InfoPen do Ministério da Justiça apontou um
crescimento de 508,8% na população carcerária brasileira no período de 1990 a
2012; taxa de 287,31% para cada 100 mil habitantes.
A
população carcerária feminina, por sua vez, aumentou 42% entre 2007 e 2012.
Os povos
indígenas têm seu habitat invadido e sua sobrevivência física e cultural são
sempre mais difíceis. São vítimas de violência como agressões, expulsão de suas
terras, contaminação por doença, depredação do meio ambiente, assassinatos e
suicídios.
As mulheres são vítimas de violência, preconceito e discriminação de
toda natureza. Pesquisa realizada em 2012 sobre violência contra a mulher
fluminense revela o seguinte e aterrador quadro:
Tipo
de crime
|
Aumento registrado
(em relação a 2011)
|
Estupro
|
82,8%
|
Tentativa
de estupro
|
94,9%
|
Calúnia,
injúria e difamação
|
72,4%
|
Ameaça
|
66,7%
|
Lesão
corporal dolosa
|
65,3%
|
Constrangimento
ilegal
|
56,6%
|
No plano
institucional, é preciso destacar o esgotamento do sistema político, a perda de
credibilidade e de representatividade das instituições políticas e o
distanciamento entre o que deve ser o Estado Democrático de Direito e a
realidade brasileira.
Note-se
ainda as desigualdades na proporcionalidade da representação dos eleitores dos
pequenos e grandes estados da federação, o abuso do poder econômico nas
eleições, a perda de identidade das agremiações partidárias. Tudo isso
compromete o pleno exercício dos direito civis dos cidadãos e cidadãs
brasileiros.
Os meios de comunicação social, patrimônio natural do povo brasileiro,
foram, historicamente, privatizados e outorgados a poucos grupos de
concessionários que os exploram em regime oligopolizado e sem qualquer controle
público. É um setor com extraordinário poder de dominação ideológica e cultural
e que contribui para reproduzir privilégios e manter a exclusão social, negando
à maioria dos brasileiros o direito humano à liberdade de expressão e à
informação.
Esse
quadro se agravou com o advento da era digital e seus formidáveis meios eletrônicos
de comunicação de massa (rádio, televisão e internet) e a convergência de
plataformas tecnológicas, potencializando fortemente o poder dos grupos que
detêm as concessões desse serviço público estratégico para o desenvolvimento e
a soberania do país. As consequências disso são abusos de toda ordem e afronta
reiterada ao princípio da dignidade e aos direitos humanos fundamentais.
A
segurança pública, por sua vez, praticamente não existe para a maioria da
população, vítima frequente da repressão policial e da violência institucional
e também excluída do acesso à justiça.
Diante
de tudo isso, o Estado se mostra incapaz de instituir uma política de direitos
humanos que garanta a promoção e a preservação dos direitos fundamentais e o
acesso de todas e todos ao pleno exercício da cidadania.
Ademais, a política de direitos
humanos desenvolvida pelos governos não tem incorporado nem integrado todos os
direitos que devem compor uma justa e adequada política de direitos humanos,
quais sejam, os direitos civis, políticos, econômicos e culturais, que são
direitos universais, indivisíveis e interdependentes.
Não obstante os direitos humanos
estarem assegurados por tratados internacionais, dos quais o Brasil é
signatário, e pela Constituição Federal e a legislação brasileira, não existem
políticas públicas que garantam a todos os cidadãos e cidadãs brasileiros a
totalidade desses direitos. Assim, para a grande maioria da população do nosso
país as conquistas da Declaração Universal dos Direitos Humanos ainda não têm sentido
prático em suas vidas, o que implica em desrespeito aos direitos fundamentais
baseados na dignidade e na igualdade de todos os seres humanos.
Um outro aspecto a considerar é a
percepção distorcida da população sobre os direitos humanos, restringindo-os ao
conceito de segurança pública, o que significa um déficit de educação em
direitos humanos, dificultando, assim, a construção e a preservação desses
direitos, ao mesmo tempo em que a falta de consciência sobre os direitos de
cidadania inibe o surgimento de movimentos de pressão sobre os governos para
exigir a instituição de políticas públicas integradas, capazes de assegurar a todos os cidadãos e cidadãs
brasileiros a plenitude de seus direitos.
Lamentavelmente, ao se analisar a
realidade atual dos direitos humanos no Brasil verifica-se que houve
retrocessos e perdas em relação aos direitos consagrados na Declaração
Universal da ONU, concluindo-se pela necessidade premente de ações competentes
e imediatas do poder público no sentido de modificar essa realidade.
É paradoxal que diante de um quadro
de reais avanços normativos, embora exija aperfeiçoamentos, se verifiquem,
diariamente, situações de graves violações aos direitos humanos em nosso país,
como:
§ o desaparecimento diário de crianças
que nunca mais são encontradas e que passam a ser uma torturante procura dos
pais;
§ as mais perversas formas de violência
contra crianças, principalmente no ambiente doméstico, vítimas, inclusive, dos
conflitos entre os adultos;
§ o uso de adolescentes pelos
traficantes de drogas e sua destruição pelo consumo de crack, conhecido como a
droga da morte;
§ as mais perversas formas de violência
contra a mulher; dez mulheres são assassinadas diariamente no país, pelos seus
parceiros no próprio ambiente doméstico;
§ denúncias de injúria racial e racismo
no DF aumentaram 330% em três anos;
§ alto índice de criminalidade; são cinquenta
mil assassinatos por ano;
§ a prática da tortura como método de
inquirição nas delegacias de polícia;
§o horror do sistema prisional
brasileiro e o desrespeito cotidiano à dignidade humana nesse sistema;
§o tráfico de mulheres e crianças que
alimenta o comércio internacional da prostituição;
§preconceito e discriminação contra
negros e homossexuais, frequentemente assassinados nas vias públicas;
§violação dos direitos humanos dos
povos indígenas, massacrados na luta pela demarcação de suas terras;
§ intolerância religiosa contra os
praticantes das religiões de matriz africana;
§frequentes assassinatos de camponeses
e ribeirinhos na luta pelo direito à terra para trabalhar e onde possam viver em
paz;
Por último, lembraria os crimes de
lesa-humanidade cometidos pela ditadura militar de 1964 a 1985, ainda não totalmente
revelados, e os responsáveis por esses continuam impunes, face ao absurdo da
Lei da Anistia brasileira que os beneficiou com a autoanistia.
Ademais, o governo brasileiro deve à
sociedade o cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos
da OEA, que obriga a revelar a verdade sobre os opositores do regime militar
que foram massacrados na guerrilha do Araguaia, e a rever a Lei da Anistia para
que se possa promover a justiça de transição. Só assim, a redemocratização do
país se completará.
Diante desse trágico quadro de tão
graves violações aos direitos humanos, não temos o direito de celebrar mais uma
data comemorativa da Declaração Universal dos Direitos Humanos sem um sério e
declarado compromisso político do governo e da sociedade brasileira de envidar
todos os esforços e de lançar mão de todos os meios possíveis e necessários para
reparar essas inomináveis violações aos princípios éticos e normativos que são
os fundamentos de uma justa e civilizada política de direitos humanos.