Muito tempo atrás, lá em Uiraúna, quase sempre se viajava de trem por ser mais barato. Aquele trem era bem diferente dos de hoje, mais velozes e confortáveis. Nem se comparam com o “Maria fumaça” de outrora.
Nos povoados onde havia estação, era uma festa cada vez que o trem anunciava, com um longo apito, que estava chegando. Alvoroçada, corria a garotada toda à estação para esperá-lo. Lá já estavam vendedores ambulantes que, aos gritos, procuravam atrair a atenção dos passageiros para os produtos, que levavam para vender: bolo de milho e tapioca; pé-de-moleque e queijo de coalho; e outras coisas mais.
Guardo ainda muito vivas na memória as viagens de trem que fiz com meus pais e irmãos, fugindo da seca que castigava o povo sofrido do sertão nordestino. Como não havia estação em Uiraúna, andávamos muitas léguas, os adultos a pé e, nós, as crianças, montadas nos lombos de burros alugados, até um lugarejo de nome “Poço Adão” onde, após longa e penosa espera na estação abarrotada de gente igual a nós, tomávamos o trem que nos levava, sem destino, para bem longe do torrão natal.
Outra viagem de trem que jamais esqueci foi a que fiz, quando estudante, ao voltar para passar as férias em casa. Descobri, naquela vez, que, embora o trem fosse o mais popular meio de transporte que havia, então, mostrava as diferenças e desigualdades que existem na sociedade, mesmo numa pequena cidade como Uiraúna; e também entendi que são elas que determinam as relações entre os que nascem e vivem num dado lugar.
Essa descoberta, no entanto, não foi fruto de reflexão, até porque eu ainda não tinha idade nem maturidade suficientes para tanto. Resultou, isso sim, de uma experiência vivida por uma adolescente que ainda não despertara para o lado cruel de uma sociedade que distingue e diferencia as pessoas pelo seu nível de renda e suas posses, definindo, assim, sua posição na hierarquia social. Contudo, só entendi isso mais tarde quando já era adulta.
Compreendi, então, que a separação entre ricos e pobres na sociedade já se expressava na classificação dos vagões do trem; em vários carros de primeira e segunda classe. Neles se distribuíam os passageiros separados de acordo com seu poder aquisitivo. Os que podiam pagar um bilhete mais caro viajavam nos carros de primeira classe; enquanto os outros, que só podiam comprar uma passagem barata, ficavam nos carros de segunda.
Ademais, os passageiros dos carros da primeira classe não se misturavam com os que viajavam nos de segunda. Os carros eram separados entre si por correntes de ferro que ligavam os vagões do comboio puxado por uma máquina a vapor, dirigida por um maquinista que, indiferente às pessoas que o trem transportava, cuidava, tão somente de levá-las com segurança ao destino final.
O exemplo do trem é ilustrativo do fato de que na nossa sociedade as pessoas são consideradas e tratadas como cidadãos e cidadãs de primeira e de segunda classe e que, nem mesmo os que vivem numa pequena cidade como Uiraúna, escapam dessa lógica perversa. Prova disso, é a experiência que tive quando adolescente e que passo a relatar.
Viajava de trem, na companhia de minha avó materna, de Patos, onde eu estudava, para São João do Rio do Peixe, para passar as férias em casa, quando vivi uma situação bastante constrangedora. Estávamos num carro de segunda, quando colegas meus que também viajavam no mesmo trem, só que na primeira classe, começaram a passear entre os carros, inclusive os de segunda, onde em um deles, eu e minha avó estávamos.
Não imaginam o vexame que passei ao ser flagrada, pelos colegas, viajando num carro de segunda. Eu não disse nada à minha avó, mas a vontade que eu tinha era de me esconder para não ser vista por eles, o que para mim seria humilhante e, mais que isso, poderia até levá-los a se afastarem de mim.
Pensando nisso hoje, parece exagerado e sem sentido, mas era o sentimento de uma adolescente que não descobrira ainda as implicações de sua origem de classe e as contradições existentes na sociedade.
Além da condição social dos passageiros que ocupavam os carros de primeira e de segunda classe, o que mais havia de diferente? Nos de primeira, os assentos eram poltronas individuais, certamente confortáveis; enquanto nas de segunda, eram bancos compridos de madeira, dispostos em três fileiras paralelas ao longo do vão no interior de cada carro.
Além de serem da mesma geração e de terem nascido na mesma cidadezinha, o que mais poderia haver de comum entre os jovens estudantes passageiros daquele trem? Talvez o sonho de viverem numa sociedade sem preconceito nem discriminação de qualquer natureza e onde todos (as) se reconhecessem iguais e com o direito de serem plenamente felizes.
*Texto originalmente escrito para a Revista Felc (Fundação Educacional Lica Claudino) Nº 4