Discursos

terça-feira, 26 de julho de 2011

Maioridade do ECA

*Publicado no site Brasil Econômico em 26/07/11

Foi comemorado, no último dia 13, os 21 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado pela Lei 8.069, de 13/7/1990, que estabelece a proteção integral à criança e ao adolescente.

O ECA foi inspirado na Constituição Federal de 1988 que, pela primeira vez na história brasileira, trata a questão da criança e do adolescente como "prioridade absoluta" e a sua proteção como "dever da família, da sociedade e do Estado".

Essa lei representa, sem dúvida, inestimável conquista da sociedade, contudo sua existência, por si só, não garante que todos os direitos fundamentais de nossas crianças e adolescentes estejam devidamente assegurados.

O artigo 4º do ECA define que "é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária".

Frequentes críticas são feitas ao Estatuto por pessoas que chegam ao absurdo de afirmar que o ECA contribui para agravar a situação de violência e marginalidade de jovens e adolescentes.

Provavelmente sequer se deram ao trabalho de conhecer a lei em profundidade antes de rejeitá-la, e proporem mudanças que provocariam inaceitável retrocesso como, por exemplo, a redução da idade penal.

Em 1991, tive a oportunidade de participar, representando o Brasil, do Tribunal Permanente dos Povos que se reuniu em Milão, na Itália, para julgar a violação dos direitos de crianças e adolescentes no mundo.

Constrangeu-nos o fato do Brasil figurar entre os países que apresentavam maior gravidade quanto à violação desses direitos. No entanto, nossa legislação foi considerada, pelo Tribunal, uma das mais avançadas nesse particular, porém, não basta ter uma boa legislação. É necessário, ainda, que seja devidamente aplicada por quem tem a responsabilidade de fazê-lo.

A avaliação dos 21 anos de vigência do ECA demonstra que a família, a sociedade e o Estado, que são legalmente responsáveis pelo cumprimento do Estatuto, estão em débito, não só com nossas crianças e adolescentes, mas também com a nação cujo futuro estará comprometido por não se cuidar dos seus construtores.

O ECA atingiu sua maioridade sem garantir a milhares de crianças e adolescentes direitos fundamentais. Muitos vivem nas ruas, por não suportarem a violência em casa, e dormem nas calçadas dopados com cola ou crack; outros, privados de liberdade em instituições fechadas como Febem; além dos que permanecem fora da escola no trabalho infantil para ajudar na sobrevivência da própria família.

Somam-se a este quadro de violação dos direitos de meninas e meninos a insensibilidade e a indiferença de uma sociedade omissa diante dessas injustiças e de um Estado que não cumpre a lei que ele próprio criou.

Assim, a democracia e o futuro da nação brasileira estarão comprometidos, enquanto leis como o ECA significarem meras conquistas formais, sem incidência na vida e no cotidiano de milhares de seres humanos em formação.

Enfim, a maioridade do ECA só será atingida quando essa lei for plenamente aplicada, de modo a expressar o real compromisso da família, da sociedade e do Estado brasileiro com os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, assegurando-lhes cidadania, dignidade e um futuro justo e promissor.

terça-feira, 12 de julho de 2011

A lição de Realengo


* Publicado originalmente no site Brasil Econômico em 12/07/11

No último dia 7, a tragédia da Escola de Realengo (RJ) completou noventa dias. Passados a comoção e o forte impacto, provocados pela tragédia, potencializados pelo sensacionalismo de uma mídia do espetáculo, quem ainda se lembra daquelas cenas de horror, a não ser as crianças e adolescentes que sobreviveram ao terror e seus familiares, diretamente atingidos pela explosão de loucura de um jovem doente, também ele vítima de uma sociedade violenta da qual se vingou, punindo-se, em seguida, ao suicidar-se.

Nos primeiros dias após o pavoroso acontecimento, muito se falou sobre ele. Os especialistas da alma e do comportamento humano tentavam encontrar os possíveis motivos dos atos tresloucados do infeliz rapaz. Diferentes hipóteses foram aventadas.

Nenhuma, porém, suficiente para explicar o que teria provocado tamanha explosão de ódio contra garotos indefesos e, note-se, as meninas foram o alvo preferido do assassino, o que sugere provável aversão às mulheres.

O fato é que a tragédia nos impactou a todos e gerou perplexidade e ansiosa busca de explicações para o inexplicável. Todos se perguntavam por que tanto ódio e sede de vingança.

À medida que os dias foram passando e a comoção coletiva diminuía, a racionalidade se impôs para que pudessem ser levantadas possíveis causas dos atos violentos cometidos e, mais importante, buscar saídas para evitar outras tragédias e proteger potenciais vítimas de situações semelhantes.

Neste sentido, devemos resgatar experiências realizadas no passado, com algum sucesso, mas que não tiveram continuidade, em razão da cultura política que determina o comportamento dos gestores públicos que, quase sempre, interrompem políticas e iniciativas de seus antecessores sem considerar o interesse público.

Destaco, entre outras, o Programa Nacional Paz na Escola, que envolveu os Ministérios da Justiça e da Educação, e que durou de 1999 a 2005. Tinha como principal objetivo tornar a escola um lugar seguro e propiciador de paz e de convivência feliz.

Referido Programa fundamentava-se na compreensão de que a resposta ao problema da violência na escola não está em cercar o prédio com muros altos; nem instalar detectores de metais nas entradas; nem em aparato policial.

Estas têm sido soluções fáceis e simplistas, apontadas por autoridades para um problema complexo cuja origem não está no ambiente escolar, mas, sim, na família e na sociedade e envolve vários aspectos.

Em parceria com instituições públicas e privadas, movimentos sociais e comunidades locais, o Programa desenvolvia projetos e ações em todo o país, com vistas a estimular uma convivência na escola marcada por solidariedade, cooperação, tolerância e respeito mútuo.

Experiências como essa devem ser recuperadas e adotadas por governos em parceria com a sociedade civil organizada, no enfrentamento dos mesmos problemas que, ainda hoje, nos desafiam e que assumiram dimensão de tragédia no caso de Realengo.

Jamais devemos esquecer o martírio de crianças e adolescentes, cujas vidas foram bárbara e precocemente ceifadas e que as lições da tragédia sejam aprendidas e sirvam de alerta para que nunca mais algo semelhante aconteça.

Que as escolas sejam, de fato, um espaço de convivência onde crianças, adolescentes, educadores e pais construam juntos uma cultura de paz.