Um momento da História... (I)
08/10/2014
“Meus irmãos, minhas irmãs, meus companheiros, minhas companheiras, meus amigos, minhas amigas. Me permitam ser só Luiza dessa vez, porque não é fácil. Eu quase sempre tenho que ser a Erundina para poder sobreviver na política. E ser só Luiza tem riscos. Como outro dia, num encontro com os sem-terra, aqueles com quem a gente há décadas vem lutando pelo direito a uma casa, a um pedaço de chão na cidade. E ousei ser Luiza, coloquei a minha emoção para fora e foi mais um motivo para me atacarem. Disseram que eu havia perdido o equilíbrio emocional, outros disseram que só se faz política com a razão, que não se faz política com emoção. E eu não acredito nisso. O homem e a mulher não são feitos nem só de razão nem só de coração, emoção. O homem inteiro, o homem novo, é aquele que consegue combinar ser livre e feliz, vivendo essas duas dimensões da vida humana: coração e mente.
Eu vou ser breve porque tem tanta gente importante aqui, com tantas responsabilidades, tantas tarefas e ficando tanto tempo aqui...Mas eu fui refletindo e aprendendo muita coisa durante as falas e as
manifestações que foram lidas aqui. Uma coisa que aprendi é que eu imaginava que só faltava eu ser negra e deficiente física para completar o quadro de preconceito e discriminação. Eu aprendi que, além de faltar – já sou nordestina, mulher, trabalhadora, do PT – a condição negra, de deficiente, faltou à condição de mulher pública e naquele sentido de mulher marginalizada mesmo! Porque eu acho que a minha missão, a minha tarefa, talvez passe mais por aí. Mostrar que a mulher nordestina,
trabalhadora, petista, a negra, o deficiente, a mulher marginalizada, tem que ter o seu espaço na sociedade. Não se transformará essa sociedade, se esses segmentos todos e outros que ainda faltam não puderem ter o seu espaço, a sua vez, a igualdade e oportunidade dos outros setores da sociedade.
Eu também tive momentos, durante este ato, de lastimar algumas coisas. Como não ter conseguido levar uma mulher para o Tribunal de Contas: a Zulaiê Cobra Ribeiro. Por mais uma irregularidade de alguns vereadores, se consagrou a nomeação de um ex-vereador como conselheiro do tribunal, que hoje é uma das pessoas que perseguem esse governo, que perseguem essa proposta política, que perseguem os democratas. Infelizmente, no meu tempo de mandato, não vou ter a oportunidade de levar a Zulaiê Cobra Ribeiro para o TCM, como poderia levar tantas outras mulheres como a Terezinha Zerbini ou outras mulheres de São Paulo e do Brasil, que aí sim poderiam dar dignidade
aquele Tribunal de Contas.
Eu tive oportunidade de pensar um pouquinho sobre o meu passado, a minha trajetória, e lembrei-me do final da década de sessenta, quando fui empurrada para São Paulo pela ditadura militar. Saí do Nordeste e vim para cá chorando no ônibus da linha Recife-São Paulo. E vinha, não tendo a vergonha de dizer, chorando, porque eu imaginava que havia deixado a luta para trás, os trabalhadores do campo, os trabalhadores rurais, da Pastoral da Terra lá na Paraíba, lá no Nordeste. Ainda estava
muito viva na cabeça dos ditadores a presença das ligas camponesas lá no Nordeste. Então, se alguém que trabalhasse com o homem do campo, mesmo que não tivesse sido das ligas camponesas, era uma ameaça ao regime. Fraco regime esse, covarde regime esse, para quem uma mulher do povo, uma educadora social que trabalhava numa Pastoral da Terra com os camponeses era uma ameaça.
Então, eu vim empurrada para São Paulo, magoada, amargurada, achando que havia deixado a luta para trás. Hoje eu vejo que é verdade que Deus escreve certo por linhas tortas. Quem eu fui encontrar em São Paulo? Nas favelas, nos cortiços, na periferia mais distante e mais pobre? O camponês sem terra, empurrado pelo latifúndio, pela SUDENE, que passou a substituir o feijão, o milho e a batata por capim, para criar boi, expulsando o homem pobre do campo. E hoje eu vejo nesse ato também
um significado, um sentido maior a toda essa história. Não a história pessoal. É bobagem imaginar que a Luiza Erundina está sendo atacada, coitadinha, vítima de perseguição, que essa trajetória, é uma trajetória pessoal. Não é. Ninguém faz essa caminhada sozinha. Portanto, o que está fazendo, o que está tentando fazer, não atinge a pessoa da Luiza Erundina. Atinge a todos vocês e a muitos mais que pensam como vocês, que tem os compromissos que vocês tem. E hoje eu vejo que nesse ato
eu nunca ou, talvez, muito poucas vezes na história desse país, se juntou tanta gente importante, tão representativa, tão comprometida e com tanto potencial para mudar o País.
E aí é que vem a minha esperança, a minha esperança maior. Junto com a delegação de meu partido, iniciei alguns contatos, contatos até minimizados com chacotas. Disseram que eu estava preocupada em salvar o meu governo que estava mal, estava preocupada em fazer a maioria na Câmara e que, no fim de governo, estava chamando outras forças para governar junto comigo. Sempre que se começa alguma coisa e alguma coisa para mudar outras coisas, a gente se arrisca a não ser entendido. Mas a gente foi em frente, conseguiu trazer alguns companheiros de outras forças políticas para o governo. Não tive a ilusão de eu vou fazer maioria na Câmara Municipal de São Paulo, mas eu insisto: se queremos combater a corrupção e a imoralidade, se queremos a retomada do crescimento econômico do País, se queremos reforma agrária nesse País, se queremos reforma urbana nesse País, se queremos democracia nesse País, ou estaremos juntos ou não teremos esse País.
Eu não vou agradecer, porque esse ato não é para mim, esse ato sequer é para o meu governo só. Esse ato é em defesa de uma utopia, que é razão de ser da nossa vida, da vida de cada um. Desde a amada madre Cristina, passando pelo senador e amigo Darcy Ribeiro, cada um de vocês que está aqui, cada mulher. E a gente não vai sobreviver se não viabilizar essa utopia. Eu quero transformar esse ato em um ato de fé, nessa utopia maior que colocou muitos de nós na cadeia alguns tempos atrás, expulsou outros como o Darcy, Paulo Freire e tantos outros do país, que passaram décadas fora e que são os melhores quadros desse país. E o que havia de mais novo, de mais promissor, que era a juventude idealista, pegou em armas e foi à luta em nome dessa utopia.
Eu não vou agradecer esse ato. Eu vou fazer dele um ato e fé para que cada um de nós volte à reafirmar o seu compromisso de luta por um país sem corrupção, sem imoralidade. Um país com justiça, um país com liberdade, um país com democracia.
Muito obrigada.”
Luiza Erundina de Sousa
8 de outubro de 1991.
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