Sertanejo pobre é que nem ave de arribação. Vive fugindo da seca e da fome que fustigam, de forma impiedosa, as vítimas de freqüentes e prolongadas estiagens, verdadeiro flagelo na vida do povo nordestino.
Ás vezes eu me pergunto: -“será mesmo por falta de chuva que o sertanejo é forçado a arribar”? Pensando bem, acho que não.
Pelo que me lembro, quando vivia por lá, nem todas as famílias da Vila de Belém, hoje Uiraúna, eram obrigadas a migrar quando a chuva não vinha. Só os que trabalhavam na terra dos outros, e estes eram a maioria, tinham que partir, porque não conseguiam guardar o suficiente para se sustentar, enquanto esperavam o próximo inverno. E a espera era longa e angustiante.
Mal terminava o período das chuvas, e se fazia a colheita do que se plantava, voltava a pergunta: “será que vai ter inverno no ano que vem”? Essa preocupação atingia a todos, inclusive as crianças que, desde muito cedo, aprendiam a observar e a decifrar os sinais da natureza, que como diziam os adultos, indicavam chuva ou estiagem.
Cidade de Uiraúna-PB* |
Eu mesma, ainda bem pequena, me acostumei a olhar para o céu, ao amanhecer e ao anoitecer, à procura de alguma promessa de chuva. Alguns sinais, segundo a profecia, prometiam inverno; outros ameaçavam seca.
Observávamos, por exemplo, a cor da “barra do sol” no horizonte ao entardecer; a força e a direção do vento à “boquinha da noite”; o canto desse ou daquele pássaro, anunciando chuva ou sinalizando mau agouro. Assim, como as outras crianças pobres da Vila de Belém, cresci participando das angústias e esperanças das pessoas grandes.
A espera era longa. Durava meses. Ia até 19 de março, dia de São José, tempo em que a comunidade se mobilizava para realizar novenas e procissões e para rezar, pedindo ao Santo que mandasse chuva “para o sertão sofredor”. Aquela data era, portanto, o prazo limite que o sertanejo se dava para esperar pela chuva. Caso não chovesse até aquele dia, as famílias começavam a arrumar a trouxa para ir pelo mundo afora, sem eira nem beira, em busca de um lugar onde pudessem encontrar algum meio de sobrevivência. Sei disso por experiência própria.
Minha família migrou duas vezes por causa da seca. A primeira, na seca de 1932, quando eu ainda não havia nascido. A segunda, na seca de 1942, quando eu tinha oito anos de idade. Lembro-me, perfeitamente, como tudo aconteceu. Meus pais e três dos filhos mais velhos iam a pé. Eu e minhas duas irmãs mais novas fomos dentro de caçuás, montados sobre os burros que tinham sido alugados para transportar as crianças e alguns troços indispensáveis.
Alheias à aflição dos pais, e ignorando a gravidades da situação e os sofrimentos que nos esperavam, para nós, crianças, a véspera da viagem foi uma festa. Acompanhávamos, com animação, o movimento dos adultos nos preparativos para a viagem.
Ninguém dormiu naquela noite; nem mesmo os pequeninos. Lembro-me, emocionada, que era uma linda noite, cheia de estrelas que iluminavam a madrugada triste dos que se preparavam para partir.
Assim como a minha, muitas outras famílias foram arrancadas do seu povoado e do seu meio pela seca inclemente e pela estrutura de poder de uma sociedade injusta e desigual. Se houvesse justa distribuição de renda e da água acumulada nos açudes construídos pelo governo, com o dinheiro do povo, nas terras dos latifundiários, o camponês nordestino teria condições de esperar pela chuva e não ser forçado a migrar logo no começo da seca.
Frente de trabalho na época da seca* |
A viagem teve início nas primeiras horas da madrugada. Sob um sol escaldante, percorremos seis léguas; de Belém até um lugarejo de nome Poço Adão, onde havia uma estação de trem. Ali nos juntamos a outras famílias que também rumavam sem destino, fugindo da seca como nós.
Após longas horas de espera, tomamos o trem que nos levou até um outro povoado onde pernoitamos. Ficamos alojados numa pensão miserável, sem condições mínimas de higiene, onde vivemos uma verdadeira noite de horror. No dia seguinte, embarcamos em outro trem e seguimos rumo ao desconhecido, à mercê da própria sorte.
Termina, assim, o primeiro episódio de uma trágica e longa estória que continua até hoje, protagonizada por levas e levas de sertanejos, vítimas da seca implacável e de uma estrutura fundiária injusta e perversa que condena milhares de nordestinos ao êxodo, que os arranca de suas origens, espalhando-os pelos quatro cantos deste imenso país. Partem em revoada ”feito ave de arribação”, mas chegará o dia em que, conscientes dos seus direitos e da própria força, construirão uma nação justa e solidária, onde todos tenham garantido o pleno exercício da cidadania.
Fotos: Revista Felc
Fotos: Revista Felc
Emocionante o texto, e a deputada toca no cerne da questão: a estrutura fundiária, mais do que a seca, é a origem de cenas tristes como essa.
ResponderExcluirEu aqui do meu ninho seguro, com todos os confortos básicos normais, que se pode dizer , com a mínima dignidade de sobrevivência, de dentro do estado de São Paulo; leio , ouço, vejo e as vezes parece que nao tenho noção do que seja a vida de um sertanejo nessas condições, não dá pra assimiliar que eles nao tenham água, que precisem mudar radicalmente seu viver em busca de tao óbvia necessidade de sobrevivencia, e este fato ouço desde que eu era criancinha, hj com 47 anos parece que nada mudou. Globalização, tecnologia, direitos humanos, cidadania, ambientalismo, meu Deus! será que tudo só fica no papel, nas mídias? Ainda os sertanejos morrem de sede junto com sua plantação? Não dá para acreditar que nada tenha sido efetivamente feito para sanar esta calamidade que sobrevoa as "aves de arribação".
ResponderExcluirDeputada nós povo brasileiro, contamos com sua ajuda contra a mudança do Código Florestal que só beneficiará os Ruralistas e Multinacionais.
ResponderExcluirCom sua história de vida a Srª sabe quem sofrerá com o desastre ambiental que resultará desta mudança.