Palestra de Luiza Erundina –
Professora da
Fundação Getúlio Vargas e Ex-Prefeita de S. Paulo
Fundação Getúlio Vargas e Ex-Prefeita de S. Paulo
Novembro de 1995
A questão “para que a participação popular nos governos
locais? Nos remete a outra pergunta: “para que democracia e que tipo de
democracia queremos? “Convivemos, hoje, com farsas de democracia, pois apenas a
democracia representativa não é suficiente para o pleno exercício da cidadania
política, que supõe o exercício da democracia direta, ou seja, da participação
popular interferindo diretamente nas decisões políticas, assim como no controle
e na fiscalização da gestão pública.
Ao se referir à participação popular na instância municipal de
governo, é preciso considerar que o governo municipal tem a dimensão menor do
que o poder local. Sem dúvida, na perspectiva e da democracia, é na instância
municipal de governo que se coloca a possibilidade do exercício do poder local
que, no entanto, é mais amplo do que o poder municipal é a instância institucional
de governo, ou seja, é a expressão na esfera local do poder do Estado.
Administração municipal e poder local se completam e coexistem, mas não são a
mesma coisa. Portanto, ao falar de participação, é necessário ter presente a
relação Estado e sociedade civil, elementos presentes nessa proposta.
Desenvolvimento
social no âmbito municipal
Não se pode esperar que o município realize o desenvolvimento
social. O desenvolvimento ou é econômico, político, social e cultural, ou é
crescimento econômico. O autêntico desenvolvimento supõe uma concepção
integral, um processo global que envolve todas essas dimensões e, como tal, não
há como o município, que é a esfera de poder do Estado mais esvaziada na
organização política administrativa do nosso país, promovê-lo.
Dimensionar o desenvolvimento social em âmbito local supõe a
existência de um plano ou de uma política nacional. Sem isto, é demais esperar
que o município tenha condições de promover o desenvolvimento na perspectiva da
melhoria da qualidade de vida da população, e com a sua participação.
Essa questão nos reporta à situação que o país vive e a
orientação política que o atual governo está imprimindo ao processo de
desenvolvimento nacional. Quando muito, o governo está preocupado com a
economia, já que a política hegemônica no país está centrada na dimensão
econômica de desenvolvimento, dentro de uma perspectiva neoliberal em que nos
coloca a preocupação, inclusive, com a democracia. Sem democracia econômica e
social, a democracia política também é limitada e está submetida a riscos.
Ao analisar a forma como o governo está conduzindo a sua
política nacional, percebe-se que o social não está colocado, em nenhum
momento, em ordem de prioridade. Não há nenhuma política social consistente,
capaz de responder as demandas coletivas e ao estágio de exclusão em que se
encontra a imensa maioria da população brasileira. Até hoje o governo não
anunciou nenhuma política social de fôlego e tem se limitado a praticar uma
política compensatória, através do programa Comunidade Solidária. Este programa
tem realizado ações subsidiárias e limitadas em municípios escolhidos entre os
mais miseráveis, com uma prática clientelista, assistencialista de pior
qualidade, que já conhecemos na história brasileira em datas passada e que
nunca foram capazes de responder aos direitos sociais da população, muito menos
aos direitos de cidadania que se estendem e se completam com o exercício da
cidadania política. Então, não podemos esperar dos municípios brasileiros, por
mais que tenhamos governantes democratas, progressistas e com reais
compromissos populares, que na instância municipal de governo seja possível
promover o desenvolvimento social, com a melhoria de qualidade de vida para a
população, mesmo com participação popular, se não estiver referido a um plano
de desenvolvimento nacional e a um outro tipo de política e não essa que está
vigindo no país.
Desigualdade econômica, desigualdade social
Para que os municípios pudessem ser um dos atores a promover
o desenvolvimento social seria necessário que o governo brasileiro enfrentasse
o problema da concentração de renda. O Brasil é o país de maior concentração de
renda do mundo: 10% da população ficam com mais de 40% da riqueza gerada no
país, enquanto 50% ficam com apenas 2,3%. Os discursos oficiais costumam falar
que o Brasil é rico, mas injusto. Mas não bastam discursos, é preciso
transformá-los em práticas de governo e práticas políticas que levem à
distribuição de renda usando mecanismos como, por exemplo, a reforma
tributária. Mas, infelizmente, até hoje, o governo Fernando Henrique Cardoso
não se empenhou em uma efetiva reforma tributária como mecanismo de
distribuição de renda capaz de fazer justiça fiscal, justiça distributiva e com
isso assegurar aos municípios e às comunidades locais recursos e meios para
promover a nível local as intervenções, os investimentos e as mudanças que
possam representar de fato uma contribuição à mudança na qualidade de vida do
nosso povo e o respeito aos direitos sociais da maioria da população brasileira.
Por outro lado, o governo não acena com reformas estruturais
no país. Ainda não houve vontade política de promover a reforma agrária e a
reforma urbana, como medidas capazes de democratizar o uso da terra, condição
para promover o desenvolvimento. O Brasil não fará justiça social sem a
determinação de se realizar a reforma agrária, junto a uma política agrícola
competente, e a reforma urbana para socializar a terra, um bem que é escasso e
ainda serve à especulação, sobretudo nas grandes cidades.
São Paulo, uma das maiores cidades do mundo, com altos
índices demográficos e de urbanização, ainda tem cerca de 30 % de seus espaços
vazios reservados à especulação imobiliária. Estes dados são importantes para
se ter a justa medida dos limites e das possibilidades dos governos municipais
e do poder local para promover o desenvolvimento social. Este só será possível
com geração de emprego e renda, com distribuição da riqueza, e tudo isso ainda
está por se fazer em nosso país.
Os limites dos
governos municipais
O município é a esfera do Estado mais esvaziada de poder,
pois não tem poder econômico e, consequentemente, o seu poder político é
limitado. Apesar de ter conquistado autonomia política na Constituição de 88,
com o direito de elaborar a Lei Orgânica Municipal, não foi assegurado aos
municípios autonomia econômica, financeira e poder real para promover o
desenvolvimento local. Assim, não há como garantir os direitos sociais básicos
que fundamentam as demandas coletivas e são eixos das lutas dos movimentos populares
no seu esforço de conquista de direitos e construção da cidadania.
Os municípios brasileiros ainda ficam com a menor fatia do
bolo orçamentário, diferentemente de cidades de outros países do primeiro
mundo. Fala-se muito em promover o país ao primeiro mundo, mas não se dá um
passo no sentido de gerar iniciativas que assegurem o fortalecimento do poder
local e que viabilizem a participação da sociedade civil na gestão pública, no
exercício da cidadania política.
Em países como a Suécia, 72% da receita pública ficam nos
municípios que gerenciam e aplicam os recursos tributários e fiscais do país.
Aí sim o poder local é forte, soberano e tem condições efetivas de cumprir as
suas competências na relação com a sociedade. No Japão, EUA e países da Europa
esse percentual oscila entre 40% a 60% que fica nos municípios para ser por
eles gerenciado. No Brasil, apenas a partir
de 1988 os municípios passaram a deter uma fatia de 15% da receita
pública; antes era de cerca 5% a 6%, o que aliviou as receitas municipais. Os
recursos, porém, ainda são insuficientes para responder aos encargos repassados
aos municípios a pretexto da descentralização e da municipalização. Em tese,
essa é uma idéia positiva, avançada, mas a transferência de encargos e
responsabilidades sem a correspondente transferência de recursos financeiros no
mesmo nível, significa onerar os municípios, sobrecarregar as administrações e
limitar o poder de resposta dos governos municipais às demandas coletivas,
principalmente nos grandes centros urbanos.
Não é por acaso que os municípios são a esfera mais esvaziada
de poder. Na tradição autoritária, que marca a organização política
administrativa do país, a instância que tem uma proximidade maior com a
sociedade civil, uma relação mais direta com os cidadãos e onde a face do
Estado é mais visível, é a que tem menos poder. Exatamente por isso não se dá
poder aos municípios, porque estando mais sensíveis, e mais suscetíveis às
demandas e pressões da sociedade civil, consequentemente terão que atendê-las e
democratizar os recursos e a gestão pública.
Nessa fase de revisão constitucional, é fundamental que os
movimentos sociais organizados e entidades da sociedade civil estejam atentos e
mobilizados para que não haja retrocessos em relação às conquistas alcançadas
em 1988. Há que se admitir que são conquistas ainda limitadas não só do ponto
de vista dos direitos sociais, mas em relação às condições de interferência da
sociedade civil na definição das políticas públicas e no controle e
fiscalização das ações do Estado. É bom lembrar que foi graças à participação e
ao empenho dos setores organizados que se conseguiu avançar no texto
constitucional em relação aos direitos de cidadania; foi quando se inseriu
mecanismos de participação na gestão do Estado como o referendum popular,
plebiscito e o direito à informação sobre os recursos públicos e sua
destinação. Ainda que inscritos na Constituição como direitos e conquistas, há
muito para se regulamentar e disciplinar através de leis ordinárias e
complementares, de forma que esses mecanismos institucionais de participação
sejam de fato concretizados, sendo essa a condição para que os cidadãos possam
efetivamente participar do poder.
A democracia
participativa supõe partilha de poder
A democracia participativa é mais do que levar a população
aos finais de semana – como fazem alguns governos municipais conservadores – a
cavar valetas ou fazer asfalto, a pretexto de dizer que o governo é
democrático. Isso não é participação, é onerar e explorar a população que
dedica um tempo necessário ao lazer, à família e a recuperar as suas energias
para a projeção da imagem de um prefeito que não divide a decisão sobre o
orçamento, sobre as prioridades do governo e muito menos coloca instrumentos de
controle e fiscalização do que é realizado, agindo de forma autoritária e
centralizada.
Participação é divisão do poder, pelo executivo e o
legislativo, com a sociedade civil organizada. É tirar o poder delegado a quem
detém o mandato popular transferindo-o para a fonte do poder que é o povo. E,
ao mesmo tempo, é contribuir para que o povo se capacite e se assuma como
sujeito político que quer participar do exercício do poder através da
democracia direta, convivendo com a democracia representativa, e assim fazer
avançar a construção da democracia.
A convivência harmônica e complementar da democracia direta e
a democracia representativa – e isso é exercício de cidadania política – só é
possível na instância local de poder, nos municípios, nas cidades onde vivem os
cidadãos, onde é possível acumular seja na construção da cidadania política,
seja na consolidação da democracia.
Os desmandos e os desvios que ocorrem, sobretudo nas
comissões de orçamento em diferentes níveis, são resultados da ausência da
sociedade organizada e da falta de mecanismos regulamentados para exercer o
controle e a fiscalização da ação de governo na instância local, estadual e
federal, e para que os cidadãos que definem as prioridades e as políticas
públicas que expressam os compromissos de governos em determinada gestão.
Até mesmo os mecanismos de participação que estão previstos
em leis federais como, por exemplo, a Lei Orgânica da saúde que prevê a criação
dos conselhos municipais, estaduais e federal de saúde, não têm funcionado de
forma plena e satisfatória. Alguns municípios e estados com governos
autoritários sequer promovem as conferências que estão previstas em lei, direto
que precisa ser assegurado e vai depender do grau de pressão e de mobilização
popular para conseguir torná-las efetivas na gestão pública.
O cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, que
prevê a criação de conselhos tutelares e de conselhos de direito, ainda não foi
implementado em centenas de municípios brasileiros. Consequentemente, os
direitos das crianças e do adolescente que estão assegurados por um instrumento
que é um dos mais avançados do mundo, ainda não é uma realidade em nosso país,
devido a omissão de governantes municipais, estaduais e federal e pela
insuficiente organização e mobilização da própria sociedade civil.
O fortalecimento da democracia depende da ampliação da
participação da sociedade na gestão pública e do crescimento da consciência
política, sobretudo numa conjuntura em que os seus direitos e conquistas estão
ameaçados pelo processo de revisão constitucional; a mobilização da sociedade
tem sido insuficiente para assegurar esses direitos e para avançar mais ainda.
Não é por acaso que os setores conservadores estão tão empenhados na revisão.
Os lobbies que se montaram em Brasília são no sentido de
fazer recuar esses direitos e atribuir à Constituição de 888 a responsabilidade
pela crise do Estado brasileiro. A reforma do Estado anunciada não tem nada de
reforma porque não ataca as questões estruturais, se limitando à reforma
administrativa, particularmente ao capítulo do funcionalismo público na
perspectiva de quebra da estabilidade no emprego, como se fosse essa a grande
panacéia para resolver a crise do Estado. O que se quer é, simplesmente,
demitir funcionários nos estados e municípios para resolver o rombo financeiro
deixado por governos anteriores. Não são recentes as dificuldades financeiras
dos estados e municípios, e elas não são fruto do número de servidores que, em
alguns lugares, é até proporcionalmente inferior ao número da população
atendida.
Os limites à participação popular
Superar os limites à participação popular nas instâncias de
governo é um dos grandes desafios dessa conjuntura.
A dificuldade de acesso às informações da gestão pública
precisa ser vencida. Ninguém participa do que não conhece. A democratização das
informações é condição para a participação popular na gestão pública, na
elaboração das políticas e no controle e fiscalização das ações de governo.
A descontinuidade das administrações municipais, é um entrave
à consolidação da participação, sobretudo quando se trata de um novo governo
com compromissos antagônicos e opostos ao anterior, como se deu na cidade de São Paulo. Outro entrave é a falta de
institucionalização dos mecanismos de participação popular, principalmente
quando a força política presente no executivo tem a presença minoritária na
Câmara municipal. Em São Paulo, no que dependeu do executivo, conseguimos
democratizar a gestão da cidade, criar alguns mecanismos de participação, porém
na tivemos condições políticas no legislativo para torná-los legais e
institucionais. Este fato gerou a descontinuidade das experiências de
participação popular na cidade, assim como ocorreu em outras cidades. A
descentralização ainda é limitada no que se refere à distribuição de
competências e de poder entre as três esferas de governo. Infelizmente o
processo de revisão constitucional não aponta mudanças no pacto federativo,
predominando ainda uma enorme centralização no governo federal. Em certas
situações, alguns municípios têm atuado como franquias dos governos estaduais e
federal em relação aquilo que cabe aos municípios realizar. Do ponto de vista
normativo, de geração de leis e, sobretudo, em relação à economia não existe
autonomia e isso coloca limites à participação na gestão pública.
Por fim, a falta de organização e de politização dos setores
populares resulta que apenas uma minoria se mobiliza e participa para garantir
os interesses coletivos. É muito reduzido o número de entidades que se
comprometem com os processos de participação na gestão pública. As instituições
políticas deste país não investem na capacitação política da população, nem
mesmo os partidos políticos. Por isso a democracia brasileira ainda é
insuficiente, e a cidadania política é limitada. Não há, de fato, educação
política sistemática como programa das instituições políticas.
Concluindo, a participação popular é uma conquista e um
direito de cidadania. Não é uma benesse, não é acessória e nem secundária. É
também condição para se eleger governos democráticos e garantir a sua
governabilidade. As primeiras experiências de gestão participativa se deram com
a eleição de governos democráticos que contaram com o apoio decisivo e a
sustentação política dos setores populares.
A participação popular na gestão contribui para a educação
política do nosso povo. É condição para se fazer avançar os direitos sociais e
de cidadania e consolidar a democracia com o exercício da democracia direta.
Observações sobre a
relação com os movimentos populares
A experiência vivenciada em São Paulo, na relação com os
movimentos populares, mostrou que é muito diferente estar na oposição, ainda
mais quando nunca fizemos uma experiência de ser governo. Imaginamos de forma
honesta e séria que é possível um governante atender a todas as reivindicações
populares, por tratar-se apensa de questão de vontade política. Quando estamos
do outro lado é que verificamos que esse poder não é tão grande assim. Até
porque o poder municipal é limitado. Essa relação é tensa e conflitiva e não
poderia ser diferente, se defendemos a autonomia e a independência dos
movimentos. Não há interesse nem do governo, nem dos movimentos, que haja uma
fusão entre dois campos. Isso atentaria contra a democracia participativa no
exercício de um mandato institucional.
Entretanto, há contradições entre quem administra recursos na
gestão pública e quem está demandando investimentos. Foi uma aprendizagem
extremamente dura, conflituosa e contraditória, em São Paulo, tanto para quem
estava no movimento popular, como para quem estava exercendo cargo público. E
há contradições, também, no seio dos movimentos organizados, conflitos para
gerenciar a relação das lideranças com as suas bases, para que não pareça que
na relação com o governo municipal essas lideranças estejam sendo manipuladas,
cooptadas ou pelegas. A luta interna dentro do próprio movimento, na relação
com um governo democrático, faz com que, às vezes, sua atuação seja até mais
dura e intransigente com o governo que eleger do que se fosse com um governo conservador,
de direita.
Mas tudo isso é uma aprendizagem importante. Com erros e
acertos estamos dando passos importantes para a construção de uma nova relação
democrática.
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