Discursos

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

XIV Seminário da Comissão de Ética Pública: Ética na Gestão

Comissão de Ética Pública
 XIV Seminário:
Ética na Gestão: Ética, Democracia, Justiça e Mobilização Social
Painel 6 – Respeito aos Direitos Humanos: Uma Análise Ética

É muito importante que num evento como este seja pautada a discussão sobre os direitos humanos, quando se comemoram os 65 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).

Esta é uma oportunidade para o Estado brasileiro, por meio do seu Governo, do Parlamento e do Poder Judiciário, reafirmar seu compromisso com a promoção e proteção dos direitos humanos de todos os brasileiros e brasileiras, como um imperativo ético de todo estado democrático de direito.

A reiteração desse compromisso se impõe neste momento, quando se comprova o agravamento da situação de flagrante desrespeito a esses direitos em nosso país.

Neste nosso esforço de reflexão sobre o tema temos que ir além de uma abordagem no plano teórico que, certamente, já foi feita pelos expositores dos painéis anteriores a este, e, sem dúvida, com mais competência e autoridade.

Assim, vou focar minha intervenção na realidade atual em relação aos direitos humanos no Brasil, numa perspectiva ética e política, a partir da necessidade de compreendê-la para poder modificá-la. Este, certamente, deve ser um dos objetivos deste Seminário.

Ao iniciarmos a pesquisa para este trabalho verificamos a insuficiência dos dados disponíveis por estarem incompletos, fragmentados e desatualizados, tanto os referentes ao âmbito nacional como ao regional, o que, por si só, representa uma grande dificuldade para se chegar a um diagnóstico indispensável à elaboração de políticas públicas voltadas aos direitos humanos, bem como para a definição de estratégias com vistas ao enfrentamento e a intervenções concretas, no sentido de modificar a realidade dos direitos humanos no nosso país.

Consultamos diversas fontes oficiais de dados, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o Ministério da Justiça, a Secretaria de Política para as Mulheres da Presidência da República, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e organizações não-governamentais (ONGs), tais como, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Grupo Gay da Bahia.

Porém, esses dados estão dispersos, referentes a distintos e curtos períodos de tempo, não integrados entre si e sem sistematização. A própria dimensão continental do país e a grande diversidade e especificidades regionais são desafios a superar na compreensão da realidade, na elaboração de políticas de direitos humanos e no planejamento da intervenção sobre as mais variadas e complexas situações. Registre-se, também, que essa dificuldade se insere entre os inúmeros problemas relacionados ao conhecimento e à compreensão sobre a realidade dos direitos humanos no Brasil. É verdade que no atual governo federal existem iniciativas concretas e um real esforço para a superação dessa dificuldade.

            Passamos a mostrar alguns indicadores que comprovam a gravidade da situação de violações aos direitos humanos no nosso país, como sinalizamos antes.

Vejamos:

Assassinatos no Brasil

ASSASSINATOS
NEGROS
JOVENS
MULHERES
2011
49.309
100%
35.207
71,4%
18.436
37,4%
4.512
9,15%
2010
49.203
100%
34.983
71,1%
18.744
38,1%
4.465
9,07%
2009
48.579
100%
33.533
69%
18.510
38,1%
4.260
8,76%
OBS: o número total de assassinatos pode ser maior. Estudo do Ipea revela que entre 1996 e 2010 (15 anos) quase 130 mil assassinatos não foram contabilizados no Brasil, pois mortes violentas registradas como “causas indeterminadas” são, na verdade, homicídios.
Fonte: Ministério da Saúde



Assassinatos de indígenas (Dados referentes a 2012)
ESTADO
Nº DE VÍTIMAS
MATO GROSSO DO SUL
37 (61,6%)
MARANHÃO
7
BAHIA
4
PARANÁ
2
PARAÍBA
2
PARÁ
2
RORAIMA
2
SANTA CATARINA
1
ALAGOAS
1
MATO GROSSO
1
RONDÔNIA
1
TOTAL DE VÍTIMAS
60
Importante: o Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010 identificou 817 mil pessoas que se declaram indígenas no Brasil, 0,42% do total da população brasileira.
Fonte: Conselho Indigenista Missionário (CIMI)

  


Assassinatos de homossexuais* (Dados referentes a 2012)
Total de assassinatos
Homens homossexuais
Travestis
Lésbicas
Bissexuais
337
188
128
19
2
100%
55,62%
37,7%
5,62%
1,06%
*Fonte: Grupo Gay da Bahia



Crianças e adolescentes* (Dados referentes a 2012)
Agressões
130.029 denúncias de agressões contra crianças e adolescentes, o que representa 77% do total das denúncias do Disque 100 da SDH.
Crianças desaparecidas
De acordo com a SDH, estima-se que 10 mil ocorrências de desaparecimento de crianças e adolescentes sejam registradas por ano nas delegacias de política de todo o país.
Segundo a própria SDH, somente em 2012 foi criado um cadastro nacional, e até hoje não há informações precisas sobre os números reais.
*Fonte: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República

  
Mulheres* Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006)
Casos de estupros de mulheres
ANO
Nº DE ESTUPROS
MÉDIA
2011
42,8 MIL CASOS
22,1/100 MIL HABITANTES
2012
50,6 MIL CASOS
26,1/100 MIL HABITANTES
Denúncias de agressões
§  41.411 denúncias de agressão no Ligue 180 em 2012.
§  Mais de 677 mil ações contra agressores em 7 anos de Lei Maria da Penha.
§  Até 2009 eram 400 mil ações. Dessas, foram proferidas 80 mil (20%) sentenças definitivas e  9 mil (2%) prisões provisórias ou em flagrante.

*Fonte: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República




Presídios* (Dados referentes a 2012)
Superlotação nos presídios
Ano
Pop. carcerária
2011
514.582 presos
2012
549.577 presos
§  De 1992 a 2012, a população carcerária mais que sextuplicou, enquanto a população do país cresceu 1/3.
*Fonte: Ministério da Justiça

  
É paradoxal que esse quadro de flagrante e reiterado desrespeito aos princípios e fundamentos relacionados aos direitos humanos conviva com um marco legal e normativo, tanto no plano nacional como no internacional, que representa reais avanços. Esse descompasso precisa ser corrigido, exigindo uma resposta competente do Estado e de setores da sociedade civil, organizados em defesa dos direitos humanos e da promoção dos mesmos, para que iniciativas como a deste Seminário não fiquem em meras afirmações retóricas sem efeitos práticos no cotidiano da população vítima da violação de seus direitos.

Esta é, sem dúvida, uma questão essencialmente política, com clara dimensão ética, de responsabilidade do Estado, e também de toda a sociedade com vistas à promoção e defesa dos direitos humanos; e que deve levar em conta, não apenas os casos específicos de afronta a esses direitos, mas, sobretudo, procurar identificar e compreender as causas estruturais e as condições objetivas em que tais violações de direitos ocorrem, no sentido de combatê-las e preveni-las.

Quanto ao aspecto econômico, é preciso reconhecer que houve significativa melhora, contudo, ainda permanece forte concentração de renda e da propriedade da terra no campo e no meio urbano, além de um sistema tributário altamente repressivo e, consequentemente, injusto.

O aspecto social, por sua vez, caracteriza-se pela desigualdade, não obstante a inclusão de grande contingente populacional às condições básicas de existência, graças ao programa de assistência social; ao crescimento do trabalho formal, o aumento real do salário mínimo e amplo acesso à educação fundamental. No entanto, segundo o IBGE, 13,2 milhões de pessoas são analfabetas, o equivalente a 8,7% da população com 15 anos ou mais.

Outro dado significativo é o IDH brasileiro de 2012 que é menor do que a média dos países da América Latina e Caribe. O país está na posição 85ª do ranking, que leva em conta a expectativa de vida, o acesso ao conhecimento e a renda per capita, segundo o Pnud.

Outrossim, a saúde pública apresenta grande precariedade, o que contribui para a proliferação de planos privados de saúde, com serviços também precários e que onera o orçamento das famílias da classe média.

Em razão do alto preço da terra urbana e dos baixos salários, o déficit habitacional é muito elevado, não obstante o programa “Minha Casa, Minha Vida” do governo Dilma Rousseff. Além disso, ocorre forte crescimento de favelas, cortiços e casas precárias na periferia das grandes cidades.

Outro direito que vem sendo desrespeitado é o da mobilidade, agravado com a enorme concentração populacional nos grandes centros urbanos e regiões metropolitanas e por falta de política pública para garantir o transporte coletivo aos usuários desse serviço, sobre quem recai os elevados custos. Com a prioridade para o transporte individual, o tráfego vira um caos, além do aumento de acidentes e da violência no trânsito.

Outrossim, o Brasil é o quarto país do mundo em população carcerária. Está atrás de E.U.A, Rússia e China. Levantamento do InfoPen do Ministério da Justiça apontou um crescimento de 508,8% na população carcerária brasileira no período de 1990 a 2012; taxa de 287,31% para cada 100 mil habitantes.

A população carcerária feminina, por sua vez, aumentou 42% entre 2007 e 2012.
Os povos indígenas têm seu habitat invadido e sua sobrevivência física e cultural são sempre mais difíceis. São vítimas de violência como agressões, expulsão de suas terras, contaminação por doença, depredação do meio ambiente, assassinatos e suicídios.

As mulheres são vítimas de violência, preconceito e discriminação de toda natureza. Pesquisa realizada em 2012 sobre violência contra a mulher fluminense revela o seguinte e aterrador quadro:

Tipo de crime
Aumento registrado
(em relação a 2011)
Estupro
82,8%
Tentativa de estupro
94,9%
Calúnia, injúria e difamação
72,4%
Ameaça
66,7%
Lesão corporal dolosa
65,3%
Constrangimento ilegal
56,6%

No plano institucional, é preciso destacar o esgotamento do sistema político, a perda de credibilidade e de representatividade das instituições políticas e o distanciamento entre o que deve ser o Estado Democrático de Direito e a realidade brasileira.

Note-se ainda as desigualdades na proporcionalidade da representação dos eleitores dos pequenos e grandes estados da federação, o abuso do poder econômico nas eleições, a perda de identidade das agremiações partidárias. Tudo isso compromete o pleno exercício dos direito civis dos cidadãos e cidadãs brasileiros.

Os meios de comunicação social, patrimônio natural do povo brasileiro, foram, historicamente, privatizados e outorgados a poucos grupos de concessionários que os exploram em regime oligopolizado e sem qualquer controle público. É um setor com extraordinário poder de dominação ideológica e cultural e que contribui para reproduzir privilégios e manter a exclusão social, negando à maioria dos brasileiros o direito humano à liberdade de expressão e à informação.

Esse quadro se agravou com o advento da era digital e seus formidáveis meios eletrônicos de comunicação de massa (rádio, televisão e internet) e a convergência de plataformas tecnológicas, potencializando fortemente o poder dos grupos que detêm as concessões desse serviço público estratégico para o desenvolvimento e a soberania do país. As consequências disso são abusos de toda ordem e afronta reiterada ao princípio da dignidade e aos direitos humanos fundamentais.

A segurança pública, por sua vez, praticamente não existe para a maioria da população, vítima frequente da repressão policial e da violência institucional e também excluída do acesso à justiça.

Diante de tudo isso, o Estado se mostra incapaz de instituir uma política de direitos humanos que garanta a promoção e a preservação dos direitos fundamentais e o acesso de todas e todos ao pleno exercício da cidadania.

Ademais, a política de direitos humanos desenvolvida pelos governos não tem incorporado nem integrado todos os direitos que devem compor uma justa e adequada política de direitos humanos, quais sejam, os direitos civis, políticos, econômicos e culturais, que são direitos universais, indivisíveis e interdependentes.

Não obstante os direitos humanos estarem assegurados por tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, e pela Constituição Federal e a legislação brasileira, não existem políticas públicas que garantam a todos os cidadãos e cidadãs brasileiros a totalidade desses direitos. Assim, para a grande maioria da população do nosso país as conquistas da Declaração Universal dos Direitos Humanos ainda não têm sentido prático em suas vidas, o que implica em desrespeito aos direitos fundamentais baseados na dignidade e na igualdade de todos os seres humanos.

Um outro aspecto a considerar é a percepção distorcida da população sobre os direitos humanos, restringindo-os ao conceito de segurança pública, o que significa um déficit de educação em direitos humanos, dificultando, assim, a construção e a preservação desses direitos, ao mesmo tempo em que a falta de consciência sobre os direitos de cidadania inibe o surgimento de movimentos de pressão sobre os governos para exigir a instituição de políticas públicas integradas, capazes  de assegurar a todos os cidadãos e cidadãs brasileiros a plenitude de seus direitos.

Lamentavelmente, ao se analisar a realidade atual dos direitos humanos no Brasil verifica-se que houve retrocessos e perdas em relação aos direitos consagrados na Declaração Universal da ONU, concluindo-se pela necessidade premente de ações competentes e imediatas do poder público no sentido de modificar essa realidade.

É paradoxal que diante de um quadro de reais avanços normativos, embora exija aperfeiçoamentos, se verifiquem, diariamente, situações de graves violações aos direitos humanos em nosso país, como:

§ o desaparecimento diário de crianças que nunca mais são encontradas e que passam a ser uma torturante procura dos pais;
§ as mais perversas formas de violência contra crianças, principalmente no ambiente doméstico, vítimas, inclusive, dos conflitos entre os adultos;
§ o uso de adolescentes pelos traficantes de drogas e sua destruição pelo consumo de crack, conhecido como a droga da morte;
§ as mais perversas formas de violência contra a mulher; dez mulheres são assassinadas diariamente no país, pelos seus parceiros no próprio ambiente doméstico;
§ denúncias de injúria racial e racismo no DF aumentaram 330% em três anos;
§ alto índice de criminalidade; são cinquenta mil assassinatos por ano;
§ a prática da tortura como método de inquirição nas delegacias de polícia;
§o horror do sistema prisional brasileiro e o desrespeito cotidiano à dignidade humana nesse sistema;
§o tráfico de mulheres e crianças que alimenta o comércio internacional da prostituição;
§preconceito e discriminação contra negros e homossexuais, frequentemente assassinados nas vias públicas;
§violação dos direitos humanos dos povos indígenas, massacrados na luta pela demarcação de suas terras;
§ intolerância religiosa contra os praticantes das religiões de matriz africana;
§frequentes assassinatos de camponeses e ribeirinhos na luta pelo direito à terra para trabalhar e onde possam viver em paz;


Por último, lembraria os crimes de lesa-humanidade cometidos pela ditadura militar de 1964 a 1985, ainda não totalmente revelados, e os responsáveis por esses continuam impunes, face ao absurdo da Lei da Anistia brasileira que os beneficiou com a autoanistia.

Ademais, o governo brasileiro deve à sociedade o cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que obriga a revelar a verdade sobre os opositores do regime militar que foram massacrados na guerrilha do Araguaia, e a rever a Lei da Anistia para que se possa promover a justiça de transição. Só assim, a redemocratização do país se completará.


Diante desse trágico quadro de tão graves violações aos direitos humanos, não temos o direito de celebrar mais uma data comemorativa da Declaração Universal dos Direitos Humanos sem um sério e declarado compromisso político do governo e da sociedade brasileira de envidar todos os esforços e de lançar mão de todos os meios possíveis e necessários para reparar essas inomináveis violações aos princípios éticos e normativos que são os fundamentos de uma justa e civilizada política de direitos humanos.

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