Secretário de Educação Paulo Freire reunido com seu secretariado - Foto: Acervo Paulo Freire |
Revista Cadernos do terceiro mundo N° 200 – Junho de 1997
Confesso que hesitei em aceitar o honroso convite para escrever um artigo sobre Paulo Freire, a ser publicado pela revista. Isso porque ainda estou sob o impacto e a forte emoção pelo seu falecimento, ocorrido há pouco mais de um mês.
Pensei melhor e concluí que era uma oportunidade que se me oferecia de homenagear, mais uma vez, meu grande amigo e nosso mestre querido. Tentarei lembrar fatos e situações que me ligaram a Paulo Freire, procurando revivê-los, o que, certamente reavivará a enorme saudade que ele me deixou.
Conheci Paulo Freire no dia 7 de março de 1980, logo após sua chegada do exílio, por ocasião de uma solenidade de formatura de uma turma de Serviço Social das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), de São Paulo. Era ele o patrono e eu, a paraninfa.
Aquele foi, para mim, um momento especial, pois a pessoa cujas idéias haviam alimentado meus sonhos e esperanças da juventude estava ali, perto de mim, e eu pude ouvir sua fala mansa, com forte sotaque nordestino, e sentir o afeto que transbordava de sua figura despojada e carismática. Todos nós, eu e os formandos, esperávamos que ele fizesse um discurso formal, próprio de circunstâncias como aquela, e que denunciasse as injustiças de que fora alvo e sofrimento dos longos e duros anos de exílio.
Ao invés disso, sua fala foi simples e despretensiosa, cheia de serenidade e ternura, como se estivesse reencontrando pessoas da sua intimidade, após longa espera e muito tempo de ausência. Confesso que fiquei um pouco constrangida com o formalismo do meu discurso, que precedera o dele, diante da simplicidade e do tom familiar do seu. Foi a primeira lição que, pessoalmente sem que ele soubesse, recebi dele.
Uma outra circunstância que me ligou a Paulo Freire foi a entrega do Título de Cidadão Paulistano que lhe foi outorgado pela Câmara Municipal de São Paulo, por iniciativa minha, então vereadora do Partido dos Trabalhadores.
Nordestino, como muitos de nós que vivemos em São Paulo, experimentou desde cedo as agruras que afligem a maioria do nosso povo. E foi a realidade concreta desse povo que inspirou sua teoria e filosofia da educação, que se expressaram na sua vida como um compromisso com os oprimidos e com o seu processo de libertação.
Eu estava na Paraíba, quando Paulo Freire iniciava no Recife, em 1961, o Movimento de Cultura Popular. Começou a aplicar seu método de alfabetização de adultos nas favelas do Recife, em Pernambuco, e na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte. Estendeu-o, depois, a todos os estados do Nordeste com grande sucesso, o que levou o governo federal de então a adotá-lo em todo o país, através do Plano Nacional de Alfabetização de Adultos.
Com o golpe militar de 1964, Paulo Freire foi preso sob acusação de ser “subversivo e ignorante”. Passou 75 dias na cadeia, antes de partir para 15 anos de exílio na Bolívia, Chile, Estados Unidos, Suíça e em alguns países africanos. Isso porque sua pedagogia de libertação atentava contra as relações de opressão que dominavam e ainda dominam na sociedade brasileira.
A conscientização das massas, que o seu método promova, representava uma tal ameaça para o projeto da elite, que, na época, estava sob os cuidados dos ditadores militares. Imaginavam os donos do poder destruir, dessa forma, o trabalho de Paulo Freire. Muito pelo contrário. Os quinze anos de exílio foram os mais fecundos para suas pesquisas e conseguiu levar aos países mais longínquos e às regiões mais pobres do mundo sua valiosa contribuição como educador.
Sua obra educacional se reveste de profundo humanismo, fruto de seu amor pelo ser humano e de sua confiança no povo. O movimento de educação popular que iniciou representou uma das mais importantes mobilizações de massa ocorridas no Brasil, criando e ampliando as oportunidades de participação popular, o que constituiu ameaça aos privilégios da maioria. Por isso, suas idéias e ação precisavam ser freadas, antes que desencadeassem processo irreversível de libertação do nosso país.
De volta ao Brasil, sem mágoa ou ressentimento, Paulo Freire retomou seu trabalho, a partir de São Paulo, engajando-se, desde logo, na luta dos trabalhadores brasileiros e na construção de um projeto político para o Brasil, através do Partido dos Trabalhadores, ao qual se filiou.
Conscientizar
Atento à dialética da realidade que também ocorre no pensamento humano, suas concepções não pararam de evoluir, conforme se depreende da obra monumental, desde a Educação como prática da liberdade, da Pedagogia do oprimido, retomada na da Pedagogia da esperança, entre muitos outros, até a Pedagogia da autonomia, lançado poucos dias antes da sua morte.
São marcos de sua trajetória intelectual, inspirando-se sempre na concepção da educação como instrumento de transformação das sociedades, a partir da ação concreta de homens e mulheres como sujeitos da história, inseridos numa situação concreta de vida, que compreende múltiplas dimensões: econômica, social, política, cultural. Com efeito, sua concepção de educação, como processo de conscientização, constitui uma autêntica proposta de educação como ação transformadora, o que, em conseqüência, o levou a engajar-se na luta contra a injustiça, a opressão e a dominação de classe. Injustiça, opressão e dominação que se expressam na exclusão da maioria do nosso povo com relação aos seus direitos fundamentais, inclusive o direito à educação.
Visão libertadora
O caráter revolucionário de sua proposta de educação é destacado pelo próprio Paulo Freire, ao afirmar, no final de sua Pedagogia do oprimido: “Assim como o opressor, para oprimir, necessita de uma teoria da ação opressiva, assim também o oprimido, para se tornar livre, necessita de uma teoria da ação. O opressor elabora sua teoria da ação sem o povo, porque na verdade coloca-se contra ele; nem pode o povo, já que é subjugado e oprimido, internalizando a imagem do opressor, construir por si mesmo a teoria de sua ação libertadora. Apenas no encontro do povo com os líderes revolucionários em sua comunhão, em sua práxis, pode essa teoria ser construída.”
Passagem marcante
Retomo, no nível da memória, outros momentos da minha trajetória nos quais tive o privilégio e a felicidade de cruzar com Paulo Freire, o que me marcou por toda a vida. Um deles foi quando, eleita prefeita de São Paulo, pensei em convidá-lo para secretário de Educação. Embora sem muitas esperanças de que aceitasse, pois sabia de sua aversão a cargo público, ousei fazer o convite.
Eu estava em Campina Grande, na Paraíba, antes da posse, quando telefonei para ele, que se encontrava em Campinas, dando aulas na Unicamp. Grande foi minha surpresa e alegria ao receber pronta resposta dele, que me disse ao telefone: ”Eu jamais pensei no em assumir cargo público, mas não ficaria em paz com minha consciência se recusasse colaborar com a primeira experiência de governo democrático e popular. Eu aceito o convite.”
Do outro lado da linha, a milhares de quilômetros, vibrei e me emocionei com a sua generosidade e prontidão. Estava escolhido o primeiro nome de meu Secretariado. O Nordeste e o país inteiro vibraram e aplaudiram a escolha.
A partir de janeiro de 1989, Paulo Freire foi o secretário Municipal de Educação de São Paulo, cargo em que permaneceu quase dois anos e meio, marcando definitivamente a história da educação na maior cidade do país e na terceira maior cidade do mundo.
As crianças pobres de São Paulo, a quem chamava de “meninos populares”, se tornaram sua paixão de educador e para elas criou uma “escola alegre”.
Foi competente e democrático na condução daquela pasta. Conseguiu criar uma equipe de auxiliares a quem delegou poderes e autonomia. Exercia autoridade de forma democrática e enfrentava situações conflituosas com muita paciência. Dizia que o trabalho educativo exigia paciência histórica, porque a educação e um processo de longo prazo. Encontrou uma secretaria com prédios e equipamentos totalmente deteriorados, os educadores desmotivados e sem qualquer orientação pedagógica.
Em entrevista a um jornal, ele afirmou em 19 de fevereiro de 1989: “Se não apenas construirmos mais salas de aula, mas as mantivermos bem cuidadas, zeladas, limpas, alegres, bonitas, cedo ou tarde a própria boniteza do espaço requer outra boniteza: a do ensino competente, a da alegria de aprender, a da imaginação criadora tendo liberdade de exercitar-se, a da aventura de criar.”
Dedicou-se à formação permanente dos educadores e defendia ardorosamente melhores salários para os professores. A propósito, ele me escreveu a seguinte carta, em julho de 1990: “Prezada Erundina, se há algo que não precisamos fazer, você e eu, é tentar convencer, você a mim, eu a você, de que é urgente, entre inúmeras mudanças neste país, mudar a escola pública, melhorá-la, democratizá-la, superar seu autoritarismo, vencer seu elitismo. Este é, no fundo, seu sonho, meu sonho, nosso sonho. A materialização dele envolve, de um lado, o resgate de uma dívida histórica com o magistério, de que salários menos imorais são uma dimensão fundamental, de outro, a melhoria de condições de trabalho, indispensáveis à materialização do próprio sonho. Suprem estas condições a possibilidade de trabalho coletivo para a efetivação da reorientação curricular e a formação permanente dos educadores e das educadoras, que não se pode realizar a não ser mudando-se também o que se entende hoje por jornada de trabalho nas escolas.”
“Se há muito estou certo e absolutamente convencido hoje de que, só na medida em que experimentamos profundamente a tensão entre a “insanidade” e a sanidade, em nossa prática política, de que resulta nos tornarmos autenticamente sãos, é que nos faremos capazes de separar as dificuldades só aparentemente intensas possíveis que nos apresentam na busca da concretização de nossos sonhos.”
“Na verdade, querida Erundina, é isso o que você vem sendo e é isso o que você vem fazendo ao longo de sua vida de militante, amorosa da verdade, defensora dos ofendidos, entregue sempre à boniteza doida de servir.”
“O texto que se segue, de produção coletiva, amorosamente militante também, é uma espécie de grito manso, de apelo, em busca da concretização de nossos sonhos. Do amigo, Paulo Freire.”
Escrever
Depois de dois anos e meio ele me pediu para deixar o cargo: “A equipe que formei e que vou deixar é plenamente capaz de continuar o trabalho que começamos. Quero ir para casa, para escrever sobre a experiência que realizamos.”
Relutei em aceitar a sua saída, porém eu sabia do quanto o cargo lhe pesava, sobretudo devido aos problemas políticos que enfrentava. Outro aspecto era a convivência com as críticas injustas e destrutivas da mídia, que lhe faltava, muitas das vezes, até mesmo com o respeito.
Todos nós, que convivemos com ele no governo, nos lembramos com emoção de sua presença humilde e discreta nas reuniões do Secretariado e da profundidade e riqueza de suas intervenções. Paulo Freire nos marcou a todos com a força da sua verdade e coerência e a leveza do seu afeto e compreensão humana.
Compromisso
Eu o vi pela última vez no dia 10 de abril, no lançamento do seu derradeiro livro, Pedagogia da autonomia. Ele escreveu no meu exemplar: “Para Erundina, com a mesma esperança, com a mesma força com que briguei a seu lado, pela educação em São Paulo. Com o querer bem de Paulo Freire.”
Vi quanto estava feliz e, brincando, me disse: “Como vê, estou cumprindo a promessa que fiz a você. É o sétimo livro que escrevi depois que saí do governo.”
Com todas estas lembranças ainda muito vivas na mente e no coração, a notícia de seu falecimento nos pegou desprevenidos e nos deixou vazio enorme e profundo sentimento de orfandade. O desafio está em preenchermos este vazio e substituirmos essa sensação de perda por imenso sentimento de gratidão pelo legado inestimável que ele nos deixou.
Que Deus nos dê forças para sermos fiéis ao seu compromisso que, mais do que nunca, é nosso também, compromisso de luta e de amor por um mundo “menos feio, menos malvado, menos desumano...”
Obrigada, Paulo Freire!
Me emocionei, principalmente pela amorosidade que é característica tanto do nosso querido e eterno Professor, quanto de nossa querida Luiza.
ResponderExcluirTive a oportunidade de estar muitas vezes com ele no CEFOR - Centro de Formação dos Trabalhadores da Saúde de São Paulo, onde tive o privilégio de acompanhar e trabalhar desde a fundação do Centro com a presença marcante dessas duas pessoas tão queridas...
Saudade é a palavra.