*A deputada Luiza Eundina participou do Seminário sobre a Encíclica escrita pelo Papa João XXIII "Pacem in Terris" na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa – CDH no Senado Federal no dia 08/07/2013
Como cristã eu acredito que o divino, ou seja, Deus nas suas mais variadas expressões como é considerado pelos seres humanos que habitam o planeta Terra, intervém na história, através de sujeitos livres, homens ou mulheres, escolhidos segundo critérios quase sempre estranhos e em desacordo com a lógica e as preferências humanas. Este foi o caso, creio eu, da escolha do cardeal Angelo Roncalli – papa João XXIII – para governar a Igreja Católica num momento de grave crise nas relações econômicas, sociais, culturais e políticas entre povos e nações do mundo, após a segunda Guerra Mundial que deixou traumas e sequelas que persistem até hoje e que são motivo de sofrimento e dor na vida de muita gente, além de ter causado perdas inestimáveis de grande parte do patrimônio cultural da humanidade.
A eleição do cardeal Roncalli foi recebida pela própria cúpula da Igreja, acredito eu, com certa decepção. Um homem simples, sem grandes dotes e com bastante idade. Este aspecto, porém, serviu de alento para o Colégio de Cardeais que certamente pensaram: “Bom, vai ser um pontificado curto e transitório. Na próxima eleição teremos mais cuidado na escolha”. Não sabiam eles ou talvez não acreditassem que outros são os critérios de Deus em suas escolhas e em seus desígnios. Também não se lembraram do que dizem as Escrituras: “Deus elevou os humildes e derrubou os poderosos do seu trono”.
Aquela escolha, porém, como sempre o é, foi feita pelo Espírito Santo que, qual indomável ciclone, varreu a indestrutível estrutura de poder da Igreja Católica Romana para reconstruí-la sobre novos alicerces, ao mesmo tempo em que tal força avassaladora transbordava mundo a fora, abalando os fundamentos que sustentavam as instituições políticas durante a Guerra Fria.
O breve papado de João XXIII, de apenas cinco anos, deixou um legado que marcou de forma indelével a história da Igreja e a história da humanidade, por meio de suas notáveis encíclicas “Mater et Magistra” e “Pacem in Terris” e do Concílio Ecumênico Vaticano II que revitalizou e reformou toda a Igreja.
No dia 5 de julho próximo passado o vaticano confirmou que os papas João Paulo II e João III serão canonizados até o fim deste ano. Karol Wojtyla, polonês, governou a Igreja de 1978 a 2005. Nos meios religiosos corre a versão de que o papa Francisco quis relativizar o significado da canonização do papa polonês ao autorizar ao mesmo tempo e sem necessidade da comprovação de milagres, a canonização de João XXIII, conhecido também como o “papa bom”. A canonização sem exigência de milagres é uma prerrogativa do papa, raramente utilizada. Que recado o papa Francisco quer passar com esse gesto inusitado? Justo no ano em que se celebra o centenário da encíclica “Pacem in Terris”? Esse papa Francisco parece ser um outro iluminado que, a exemplo do papa João XXIII, veio para renovar a Igreja e dar um novo rumo á sua missão num mundo tão conturbado quanto aquele do pontificado de João XXIII.
Não obstante a comunidade política mundial ter recebido com grande surpresa e entusiasmo, cinquenta anos atrás, a publicação da encíclica “Pacem In Terris”, não incorporou em suas práticas e decisões políticas as ideias preconizadas por aquele importante documento papal sobre a construção da paz entre os povos e nações, que supõe: “a verdade como fundamento, a justiça como norma, o amor como motor, a liberdade como clima”.
Ao contrário do que propõe o papa João XXIII, o mundo continua profundamente dividido e fraturado por lutas intestinas que alimentam a indústria bélica na fabricação de armamentos cada vez mais sofisticados e com maior poder de destruição em massa. Por outro lado, a diplomacia como meio de mediação de conflitos, próprio de sociedades civilizadas, fica relegada a último plano, enquanto os confrontos armados são frequentes, dizimando vidas humanas e destruindo o patrimônio material e imaterial da humanidade.
A dignidade e os direitos humanos, defendidos pela encíclica “Pacem in Terris” como fundamento da paz, são reiterada e impunimente violados pelas sociedades nos dias atuais. Com economia capitalista neoliberal, subordinada à lógica do mercado e voltada à reprodução ilimitada dos lucros e do capital, ao mesmo tempo que reproduz os privilégios de uma minoria, em detrimento dos interesses da maioria que são os trabalhadores e trabalhadoras.
Com a incorporação de novas tecnologias ao processo de produção, ocorre aumento da produtividade do trabalho e, consequentemente, dos lucros. No entanto, o valor do salário permanece inalterado, enquanto os lucros são apropriados pelos detentores dos meios de produção. Esta é, pois, a principal causa da desigualdade e que atenta contra a justiça e a paz social.
Sendo o desenvolvimento desigual um dos princípios basilares do capitalismo, daí decorrem as desigualdades regionais dentro de um mesmo país e entre países desenvolvidos e países emergentes. Assim, na ordem econômica mundial, baseada na economia de mercado e na globalização econômica, é a raiz da exclusão e da desigualdade social, comprometendo a existência de paz.
Diante desse quadro desalentador que caracteriza a realidade do mundo nos dias de hoje, conclui-se que as lições deixadas por João XXIII, em suas extraordinárias encíclicas ainda não foram apreendidas por aqueles que governam o mundo. No entanto, como semente boa em terreno fértil, continuarão a germinar no coração dos que têm fé e dedicam a vida à busca da verdade e da justiça e à construção da unidade e da paz no mundo.
As encíclicas “Mater et Magister” e “Pacem in Terris” do papa João XXIII, além de representarem um salto fantástico na atualização da doutrina social da Igreja e sua adequação à realidade dos novos tempos, projetaram, no âmbito mundial, a dimensão social do Evangelho e sua atualidade e efetividade na história da humanidade.
No Brasil, o eco das mensagens do papa João XXIII, por meio de suas encíclicas, atingiu profundamente e de forma concreta os movimentos sociais populares e os estudantes que, na época, se mobilizaram para defender as Reformas de Base reclamadas pelo povo brasileiro. Esses movimentos foram precursores das Comunidades Eclesiais de Base, espaços privilegiados de vivência evangélica e de integração entre fé e política. Também era anseio do papa João XXIII que os cristãos se inserissem no mundo da política para renová-la com o testemunho de sua fé e colocar-se, em unidade com os outros, a serviço da construção do bem comum.
Enfim, ao celebrarmos os cinquenta anos da encíclica “Pacem in Terris” do papa João XXIII, devemos estar atentos aos sinais do tempo, como ele nos ensinou, para compreendermos seus apelos e identificarmos os desafios a enfrentar e a superar à luz dos sábios ensinamentos do pastor e profeta que vislumbrou a construção de uma nova humanidade, na qual reinarão a Verdade, a Justiça, o Amor e a Liberdade.
Luiza Erundina
Deputada Federal PBS/SP
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