Discursos

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Rua dos Negreiros

*Artigo originalmente publicado na revista FELC - Fundação Educacional Lica Claudino
No meu tempo de menina, tinha uma rua lá na Vila de Belém conhecida como “Rua dos Negreiros”. Será que ela ainda existe, com esse nome e do jeito que era no passado? Tomara que não. Preciso voltar lá para conferir.
A Rua dos Negreiros era pequena e de chão de terra. Aliás, naquele tempo não se asfaltavam as ruas da Vila. Era uma rua cinzenta e empoeirada. Em Belém, hoje Uiraúna, como de resto no sertão nordestino, quase não chove o ano todo, todos os anos. Porém, a vida dos que moravam naquela rua não era menos penosa quando chovia, pois virava um lamaçal só. O barro melava os pés descalços dos meninos e sujava de lama as casas de chão batido, levada pelos chinelos de currilepe dos adultos. O lamaceiro da rua virava festa para os porquinhos dos moradores que os cevavam para vender ou comer nas festas de fim de ano. Lembro muito bem daqueles danados. Como poderia esquecê-los, depois de quase me terem causado uma “tragédia”?
Nunca vou me esquecer daquele dia. Eu estava sentada no batente da porta da casa de Tatica, que dava para a rua, bordando a capa de uma sela de couro que meu pai, mestre Tonheiro, fazia lá na sala de visitas da nossa casa que servia de oficina onde ele trabalhava.
De repente, um danadinho daqueles porcos passou por mim embalado, salpicando lama para tudo que era lado (claro que foi sem querer) e sujou a sela que eu bordava. Eu sempre ajudava meu pai nesse trabalho e gostava muito de fazer isso. Foi um susto terrível. Fiquei aperriada sem saber o que fazer. Tatica veio correndo me ajudar. Não me lembro mais o que fizemos para sair daquela situação. Só não esqueci a enorme tristeza de ter que levar para meu pai a capa da sela manchada de lama. Não era medo do que ele faria comigo ou de como reagiria, pois ele era uma pessoa doce, compreensiva e me amava muito. Meu único receio era de lhe causar prejuízo e preocupação. Já não consigo me lembrar do que aconteceu depois. Certamente, nada importante.
Retomo agora o assunto que deixei para trás e que me serviu de inspiração para escrever sobre a estória da Rua dos Negreiros. Pois bem, na pequena Vila de Belém havia poucas ruas. Uma delas, era a Rua dos Negreiros. Por que esse nome? Eu sempre me perguntava. Até que descobri que era porque lá moravam os negros e negras da Vila. Viviam todos naquele gueto, embora trabalhassem nas casas e ruas dos brancos. Mesmo os brancos pobres, como nós, não morávamos onde moravam os negros e vice-versa.
Tomei tento disso quando Tatica, minha irmã de criação, que era negra e se casara com um negro, teve que ir morar com ele na Rua dos Negreiros; não que meus pais a obrigassem a ir para lá, pois a tinham como filha, mas porque era costume, naquele tempo, tido como natural, e que ninguém questionava.
Tatica, uma irmã e um irmão ficaram órfãos ainda pequenos. Ela, que era afilhada de minha mãe, veio morar em nossa casa e virou a filha mais velha da família. Sua irmã, Bastinha, foi para a companhia da Tia Rosa, irmã de  minha mãe, que era sua madrinha.
Para mim, que era criança e amava muito Tatica, foi o primeiro grande choque da minha vida, ver minha irmã mais velha sair de casa para ir morar na Rua dos Negreiros com seu marido, que também era negro. Lembro-me, até hoje, da minha dor e tristeza; do meu choro de criança por ver Tatica partir e perceber que estava perdendo a irmã que eu amava.
Essa foi, sem dúvida, uma experiência traumática para uma criança e que me marcou profundamente por toda a vida. Fez-me despertar muito cedo para o lado perverso da convivência entre as pessoas numa sociedade onde ser negro era um estigma e motivo de rejeição, sendo obrigado a viver separado dos brancos e lançado no mundo fechado do gueto.
Entendi, desde então, o absurdo que é a discriminação contra alguém que, por ser diferente, era considerado e tratado como inferior, e quanto o preconceito, mesmo disfarçado, é tão forte que chega a se sobrepor aos laços afetivos que, eventualmente, se constroem entre pessoas distintas quanto a raça e condição social.
Contudo, apesar dessas tristes lembranças que trago de meu tempo de menina, também me lembro, com alegria, dos momentos felizes que vivi na Rua dos Negreiros nas minhas idas à casa de Tatica. Lá eu me sentia bem e foi onde aprendi a conviver e a respeitar as diferenças e, mais que isso, a me enriquecer com elas. Certamente isso tudo contribuiu para que eu tomasse consciência das injustiças e desigualdades que existem na nossa sociedade e que se expressam até mesmo numa pequena comunidade como a Vila de Belém.

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