Discursos

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Atuais desafios mundiais e a Pacem in Terris

*A deputada Luiza Eundina participou do Seminário sobre a Encíclica escrita pelo Papa João XXIII "Pacem in Terris" na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa – CDH no Senado Federal no dia 08/07/2013


Como cristã eu acredito que o divino, ou seja, Deus nas suas mais variadas expressões como é considerado pelos seres humanos que habitam o planeta Terra, intervém na história, através de sujeitos livres, homens ou mulheres, escolhidos segundo critérios quase sempre estranhos e em desacordo com a lógica e as preferências humanas. Este foi o caso, creio eu, da escolha do cardeal Angelo Roncalli – papa João XXIII – para governar a Igreja Católica num momento de grave crise nas relações econômicas, sociais, culturais e políticas entre povos e nações do mundo, após a segunda Guerra Mundial que deixou traumas e sequelas que persistem até hoje e que são motivo de sofrimento e dor na vida de muita gente, além de ter causado perdas inestimáveis de grande parte do patrimônio cultural da humanidade.

A eleição do cardeal Roncalli foi recebida pela própria cúpula da Igreja, acredito eu, com certa decepção. Um homem simples, sem grandes dotes e com bastante idade. Este aspecto, porém, serviu de alento para o Colégio de Cardeais que certamente pensaram: “Bom, vai ser um pontificado curto e transitório. Na próxima eleição teremos mais cuidado na escolha”. Não sabiam eles ou talvez não acreditassem que outros são os critérios de Deus em suas escolhas e em seus desígnios. Também não se lembraram do que dizem as Escrituras: “Deus elevou os humildes e derrubou os poderosos do seu trono”.

Aquela escolha, porém, como sempre o é, foi feita pelo Espírito Santo que, qual indomável ciclone, varreu a indestrutível estrutura de poder da Igreja Católica Romana para reconstruí-la sobre novos alicerces, ao mesmo tempo em que tal força avassaladora transbordava mundo a fora, abalando os fundamentos que sustentavam as instituições políticas durante a Guerra Fria.

O breve papado de João XXIII, de apenas cinco anos, deixou um legado que marcou de forma indelével a história da Igreja e a história da humanidade, por meio de suas notáveis encíclicas “Mater et Magistra” e “Pacem in Terris” e do Concílio Ecumênico Vaticano II que revitalizou e reformou toda a Igreja.

No dia 5 de julho próximo passado o vaticano confirmou que os papas João Paulo II e João III serão canonizados até o fim deste ano. Karol Wojtyla, polonês, governou a Igreja de 1978 a 2005. Nos meios religiosos corre a versão de que o papa Francisco quis relativizar o significado da canonização do papa polonês ao autorizar ao mesmo tempo e sem necessidade da comprovação de milagres, a canonização de João XXIII, conhecido também como o “papa bom”. A canonização sem exigência de milagres é uma prerrogativa do papa, raramente utilizada. Que recado o papa Francisco quer passar com esse gesto inusitado? Justo no ano em que se celebra o centenário da encíclica “Pacem in Terris”? Esse papa Francisco parece ser um outro iluminado que, a exemplo do papa João XXIII, veio para renovar a Igreja e dar um novo rumo á sua missão num mundo tão conturbado quanto aquele do pontificado de João XXIII.

Não obstante a comunidade política mundial ter recebido com grande surpresa e entusiasmo, cinquenta anos atrás, a publicação da encíclica “Pacem In Terris”, não incorporou em suas práticas e decisões políticas as ideias preconizadas por aquele importante documento papal sobre a construção da paz entre os povos e nações, que supõe: “a verdade como fundamento, a justiça como norma, o amor como motor, a liberdade como clima”.

 Ao contrário do que propõe o papa João XXIII, o mundo continua profundamente dividido e fraturado por lutas intestinas que alimentam a indústria bélica na fabricação de armamentos cada vez mais sofisticados e com maior poder de destruição em massa. Por outro lado, a diplomacia como meio de mediação de conflitos, próprio de sociedades civilizadas, fica relegada a último plano, enquanto os confrontos armados são frequentes, dizimando vidas humanas e destruindo o patrimônio material e imaterial da humanidade.

A dignidade e os direitos humanos, defendidos pela encíclica “Pacem in Terris” como fundamento da paz, são reiterada e impunimente violados pelas sociedades nos dias atuais. Com economia capitalista neoliberal, subordinada à lógica do mercado e voltada à reprodução ilimitada dos lucros e do capital, ao mesmo tempo que reproduz os privilégios de uma minoria, em detrimento dos interesses da maioria que são os trabalhadores e trabalhadoras.

Com a incorporação de novas tecnologias ao processo de produção, ocorre aumento da produtividade do trabalho e, consequentemente, dos lucros. No entanto, o valor do salário permanece inalterado, enquanto os lucros são apropriados pelos detentores dos meios de produção. Esta é, pois, a principal causa da desigualdade e que atenta contra a justiça e a paz social.

Sendo o desenvolvimento desigual um dos princípios basilares do capitalismo, daí decorrem as desigualdades regionais dentro de um mesmo país e entre países desenvolvidos e países emergentes. Assim, na ordem econômica mundial, baseada na economia de mercado e na globalização econômica, é a raiz da exclusão e da desigualdade social, comprometendo a existência de paz.

Diante desse quadro desalentador que caracteriza a realidade do mundo nos dias de hoje, conclui-se que as lições deixadas por João XXIII, em suas extraordinárias encíclicas ainda não foram apreendidas por aqueles que governam o mundo. No entanto, como semente boa em terreno fértil, continuarão a germinar no coração dos que têm fé e dedicam a vida à busca da verdade e da justiça e à construção da unidade e da paz no mundo.

As encíclicas “Mater et Magister” e “Pacem in Terris” do papa João XXIII, além de representarem um salto fantástico na atualização da doutrina social da Igreja e sua adequação à realidade dos novos tempos, projetaram, no âmbito mundial, a dimensão social do Evangelho e sua atualidade e efetividade na história da humanidade.

No Brasil, o eco das mensagens do papa João XXIII, por meio de suas encíclicas, atingiu profundamente e de forma concreta os movimentos sociais populares e os estudantes que, na época, se mobilizaram para defender as Reformas de Base reclamadas pelo povo brasileiro. Esses movimentos foram precursores das Comunidades Eclesiais de Base, espaços privilegiados de vivência evangélica e de integração entre fé e política. Também era anseio do papa João XXIII que os cristãos se inserissem no mundo da política para renová-la com o testemunho de sua fé e colocar-se, em unidade com os outros, a serviço da construção do bem comum.

Enfim, ao celebrarmos os cinquenta anos da encíclica “Pacem in Terris” do papa João XXIII, devemos estar atentos aos sinais do tempo, como ele nos ensinou, para compreendermos seus apelos e identificarmos os desafios a enfrentar e a superar à luz dos sábios ensinamentos do pastor e profeta que vislumbrou a construção de uma nova humanidade, na qual reinarão a Verdade, a Justiça, o Amor e a Liberdade.

Luiza Erundina 
Deputada Federal PBS/SP

quarta-feira, 29 de maio de 2013

MEDALHA VIOLETA ARRAES DE DIREITOS HUMANOS

Dep. Luiza Erundina com a medalha Violeta Arraes e Hildegard Angel, filha de Zuzu Angel

Muito me honra e comove ser a primeira mulher a receber a Medalha Violeta Arraes de Direitos Humanos, criada pela Secretaria Estadual de Mulheres do PSB do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que o Prêmio Zuzu Angel – II Edição é conferido, pela mesma Secretaria, às bravas mulheres do grupo Tortura Nunca Mais. A elas nossos cumprimentos e gratidão pela dedicação na defesa dos Direitos Humanos.

Ao ser informada pela companheira Regina Flores, Secretária da Mulher, sobre a escolha do meu nome para  receber a Medalha Violeta Arraes,  pensei sobre o significado da homenagem e conclui que não é era a mim que devia ser prestada, mas, sim, à própria Violeta ,  inspiradora da criação deste Prêmio. É a ela, pois, a quem devemos e queremos homenagear nesta noite de festa, com toda solenidade que se possa imprimir a este ato.

Com certeza, tudo o que de mais relevante eu possa destacar da trajetória de vida dessa mulher extraordinária, já deve ser de pleno conhecimento dos que estão presentes  aqui e de tantos mais que a conheceram pessoalmente ou através dos rastos luminosos que ela foi deixando atrás de si ao longo de sua rica e fascinante existência.

No entanto, o reconhecimento e a celebração pública da grandeza e dignidade de uma pessoa, cuja vida privada se confunde com a vida pública, nunca é demais, visto que  confirmam o que já se sabe sobre ela; ao mesmo tempo conferem realidade aos feitos extraordinários  de  sua vida, iluminando-os.  É o que queremos fazer neste momento,  reconhecer e celebrar a vida e a obra de Violeta Arraes que marcaram indelevelmente seu tempo e sua geração.

Violeta dedicou inteiramente sua vida às lutas pelos direitos humanos e na defesa da democracia; lutas essas que ela travou sem fronteiras, com muita coragem e determinação e no limite máximo de sua generosidade.
Cearense do Araripe, veio ao mundo em 5 de maio de 1926 e foi uma das figuras mais atuantes e influentes nos meios acadêmicos da sua época, projetando-se publicamente dentro e fora do Brasil por sua presença ativa no mundo da cultura e das artes e pelo seu engajamento político.

Em Recife, Violeta foi ativista do movimento de educação de base; atuou no Movimento de Cultura Popular, junto com o educador Paulo Freire, e colaborou com D. Hélder Câmara, enquanto membro do Secretariado Nacional da Ação Católica e integrante da Juventude Universitária Católica (JUC), de onde se originaram grupos de ação política que combateram o golpe de 64 e resistiram à ditadura civil-militar; por isso foram duramente perseguidos e dizimados.

Ligada ao Cinema Novo e ao meio artístico e cultural pernambucano, no período em que junto com o marido Pierre Maurice Gervaiseau, economista e militante socialista, Violeta colaborou com a ação política do seu irmão, o então governador de Pernambuco, Miguel Arraes, deposto e preso em 1º de abril de 1964, no golpe militar. Ambos foram presos quando chegavam à sede do Arcebispado para visitar D. Hélder Câmara no dia em que ele assumia como bispo de Recife e Olinda. Quatro meses depois, ela e sua família foram expulsos do Brasil e se exilaram  na França onde, a partir de então,  passaram a viver. 

O castigo do exílio que os algozes da ditadura lhe aplicaram, não conseguiu fazer com que Violeta arrefecesse o ânimo, nem abdicasse de seus sonhos e da utopia socialista  que iluminaram e deram sentido à sua vida. Esta é uma marca da sua origem nordestina, região onde se forjam homens e mulheres fortes que não se dobram diante das agruras da seca e do sol inclemente do semiárido, nem menos se vergam sob a opressão covarde de um regime de força que dominou pelas armas durante longos e tenebrosos vinte e um anos de ditadura e de graves violações aos direitos humanos em nosso país.

Na França, já graduada em sociologia, cursou pós-graduação em psicologia para poder ajudar, como psicoterapeuta, a muitos exilados brasileiros traumatizados com a tortura a que foram submetidos.  Por sua generosidade e dedicação no acolhimento aos exilados políticos na França, ficou conhecida como a “Rosa de Paris”.

Como integrante da Frente Brasileira de Informações, naquele país europeu, Violeta, segundo testemunho de ex-exilados, foi fundamental para a denúncia dos crimes contra os direitos humanos cometidos pela ditadura militar e, como estava acima das divisões entre partidos e grupos políticos, conseguia aglutinar todos e a todos ajudava a suportar as terríveis agruras do exílio. Sua casa em Paris se transformou em uma referência para artistas e intelectuais perseguidos pelo regime militar. Também estendeu sua ajuda aos exilados chilenos, após o golpe de Pinochet, e ao movimento anticolonialista em Angola, Moçambique e Guiné Bissau.

Com a aprovação da Lei da Anistia em agosto de 1979, Violeta retornou ao Brasil, mas foi convidada a trabalhar como adida ao projeto França-Brasil, na embaixada brasileira em Paris. De 1984 a 1986, ela se dedicou a elaborar e desenvolver o projeto, realizando vários eventos relevantes, destacando-se, entre outros, a Exposição de Arte Popular Brasileira, no Museu de Arte Moderna. Em 1988, a convite do então governador Tasso Jereissati, assumiu a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará e, em 1996, foi nomeada reitora da Universidade Regional do Cariri, na cidade do Crato, cargo que exerceu até 2003. Viveu os últimos anos de sua rica existência na cidade do Rio de Janeiro, onde veio a falecer em 2008. No entanto, Violeta continua viva, não só nas nossas mentes e nos nossos corações, mas sobretudo no exemplo que deixou, exemplo de  coragem e de fidelidade absoluta ao seu  compromisso  com os direitos humanos e com a democracia.

Para que a história de uma pessoa se revele em toda sua inteireza, é preciso que seja projetada no espaço público, sobretudo se for mulher, e, como tal, historicamente condenada a viver submersa na invisibilidade da vida privada, por determinação de uma cultura machista e patriarcal ainda hoje dominante na nossa sociedade. Violeta Arraes é uma mulher que rompeu com esse padrão e protagonizou os acontecimentos mais importantes e cruciais da vida nacional, com desdobramentos para além de nossas fronteiras.

Vale destacar, ainda, o simbolismo e o significado da Medalha Violeta Arraes de Direitos Humanos que projeta, no espaço público, a figura gigantesca dessa mulher excepcional. Esta homenagem é prestada num momento decisivo para a história e a democracia brasileira. Ocorre exatamente no momento em que, após longos e aflitivos anos de espera, o Estado e a sociedade civil brasileira buscam resgatar a memória e desvelar a verdade histórica sobre os crimes de lesa humanidade cometidos durante a ditadura militar, e apontar os responsáveis por eles, para que não fiquem impunes. Trata-se, portanto, de fazer justiça, mas para isso é preciso dar nova interpretação à Lei da Anistia que, absurdamente, anistiou vítimas e algozes.

Se viva ainda estivesse, não tenhamos dúvidas de que Violeta estaria na linha de frente deste embate entre o passado, que quer ser esquecido, e o presente que grita, em dores de parto, para que a Verdade se revele por inteiro e se faça justiça aos que, como Violeta Arraes, pagaram com prisão, tortura, assassinato, desaparecimento forçado e exílio a incipiente democracia que temos hoje. Precisamos, de uma vez por todas, passar a limpo essa vergonhosa página da nossa história, e como diz a ex-presidente do Chile, Michele Bachelet, “a ferida só sara se for lavada”. É este o momento. A hora chegou, não a deixemos escapar.

Por fim, agradeço de coração a honra de me conferirem esta Medalha que me servirá de escudo e de estímulo para continuar a luta de Violeta Arraes, e de tantos outros, na defesa intransigente dos Direitos Humanos e na luta sem trégua por Verdade, Justiça e plena Democracia.
Obrigada a todos e todas.
                                                                                     Rio de Janeiro, 27 de maio de 2013

                                                                                        Dep. Luiza Erundina de Sousa

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Por uma autêntica interpretação da Lei da Anistia

Antes de tudo, é preciso esclarecer não se tratar de revisão da lei nº 6.683/79, a Lei da Anistia. Mas, dar interpretação autêntica ao disposto no art. 1º, § 1º da referida lei, segundo a qual declaram-se conexos aos crimes políticos, objeto da anistia concedida pela lei, "os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política".

É no sentido de dar nova interpretação ao que dispõe o art. 1º § 1º da lei que apresentei o projeto de lei 573/2011, que define no art. 1º que "não se incluem entre os crimes conexos, definidos no art. 1º § 1º da lei nº 6.683/1979, os crimes cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos".

A aprovação desse projeto é condição para efetivo cumprimento à sentença condenatória do Estado brasileiro, proferida em 24/11/2010 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Assim, é dever do Brasil cumprir integralmente a decisão.

Ao julgar a ação proposta pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que questionava se a lei nº 6.683/1979 de fato anistiou agentes do Estado que cometeram crimes de tortura, assassinatos e desaparecimentos durante o regime militar (1964-1985), o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu manter a interpretação atual da Lei da Anistia e impedir que os responsáveis por crimes contra opositores políticos sejam processados, julgados e punidos.

O relator do processo, o então ministro Eros Grau, deu parecer contrário à revisão da lei, argumentando que ela teria sido "amplamente negociada". Convém lembrar, no entanto, as condições em que tal acordo se deu. Os militares ainda tinham o controle do poder e a sociedade civil dava os primeiros passos na reconstrução da democracia no país.

Por entender a imperiosa necessidade de reinterpretação da Lei da Anistia para que se conheça a verdade sobre os crimes da ditadura e os responsáveis por eles não fiquem impunes, apresentei o mencionado projeto de lei, que se encontra na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, aguardando votação.

No momento, ocorre intensa discussão da matéria pela sociedade, particularmente pelos setores mais diretamente interessados, os Comitês Memória, Verdade e Justiça, criados e funcionando na maioria dos Estados brasileiros, além das Comissões da Verdade das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, que se manifestam favoravelmente à aprovação do projeto de lei.

Recentemente, alguns membros da Comissão Nacional da Verdade também se declararam favoráveis à reinterpretação da Lei da Anistia, para que os crimes cometidos por agentes do regime militar sejam punidos. Tal manifestação representa um avanço, considerando-se que a lei nº 7376/2010, que criou a comissão, limita seus objetivos ao resgate da memória e revelação da verdade histórica sobre as graves violações aos direitos humanos ocorridas no período da ditadura militar.

Assim, fica claro que esses limites e determinações legais precisam ser superados, com vistas a possibilitar a justiça de transição. Para tanto, se impõe a aprovação do projeto de lei 573/2011, que dá interpretação autêntica à Lei da Anistia.

A mesma instituição --Congresso Nacional-- que aprovou a lei nº 6.683/1979, numa conjuntura e correlação de forças adversas, tem o poder e a prerrogativa de aprovar um outro diploma legal que atenda aos reais anseios da sociedade brasileira, ou seja, ver completado o processo de redemocratização e a plena consolidação da democracia no país.

*Publicado originalmente na seção Tendência e Debate na Folha de São Paulo em 25/05/2013

quarta-feira, 24 de abril de 2013

O Espírito Santo na Constituinte

*Matéria sobre o 10° painel do Espírito Santo na Constituinte (1988)


Erundina entende a Constituinte como um processo que, se bem utilizado, pode avançar a luta do povo.

A vereadora Luiza Erundina de Souza entende que a Assembleia Nacional Constituinte “não é uma panaceia para resolver os nossos problemas” mas tão somente “um processo que, se bem utilizado, pode avançar a luta do povo na direção de seus direitos sociais”. Erundina criticou os planos assistenciais do Governo Federal que não resolvem os problemas nem elevam a qualidade de vida do brasileiro e não passam de “uma estratégia de desmobilização da organização popular que começa a tomar consciência dos seus direitos sociais e começa a lutar por esses direitos”.

A vereadora do PT considera que a reforma agrária é indispensável para a busca de soluções do problema do povo brasileiro mas não vê ”vontade política” dos governantes sequer para colocar em prática o atual Plano Nacional de Reforma Agrária que, segundo ela, não é a reforma agrária que os trabalhadores desejam e têm direito. Foi a seguinte a exposição de Luiza Erundina no 10° painel do Espírito Santo na Constituinte:

“Antes de tudo eu queria agradecer a oportunidade deste convite e sobretudo porque se trata de um tema que diz respeito muito diretamente ao trabalho que vimos realizando junto aos setores populares de São Paulo como assistente social, como militante política e como vereadora da cidade de São Paulo. Eu gostaria também de me congratular com as entidades promotoras desse evento porque representa um esforço bastante grande e importante nessa fase preparatória à Constituinte, quando temos a obrigação de mobilizar a participação popular para que esse Congresso Constituinte, a partir da participação popular, consiga superar as limitações, as determinações a que ele estará submetido em função de todos os condicionamentos da forma como esse Congresso (e não uma Assembleia) vai ser convocado para restabelecer ou reestruturar a ordem constitucional do país. Sem a participação popular tenho muitas dúvidas que consigamos não comprometer a conquista que os setores populares, que os trabalhadores, já obtivera nesses longos anos, nessas duas últimas décadas. E que a duras penas conseguiram colocar em seus planos de lutas, direitos sociais, políticos e conseguiram inclusive algumas conquistas importantes e que ainda não estão asseguradas no corpo das leis que regem o país hoje. Que pelo menos esta nova Constituição não comprometa as conquistas já conseguidas, como já disse, a duras penas.

Mas para que isso ocorra, face à correlação de forças bastante desfavorável à maioria da população brasileira (que é constituída de trabalhadores) é necessário que consigamos mobilizar a participação popular, a participação dos trabalhadores na discussão dos temas que necessariamente devem ser objeto da discussão dos constituintes. E que devem, naturalmente, condicionar o produto final desse trabalho do Congresso Constituinte, quando da promulgação de uma nova Constituição.

Discurso em Plenário sobre encontro das Comissões da Verdade de todo País



Sr. Presidente, colegas Parlamentares, senhoras e senhores telespectadores, nos próximos dias 27 e 28, as Comissões da Verdade, criadas pela sociedade civil em todo o País, vão reunir-se, pela primeira vez, para discutir o trabalho de integração de esforços em busca da verdade sobre crimes da ditadura militar contra os direitos humanos — crimes de lesa-humanidade — em complementação, em apoio ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade.

Por sinal, além de representantes das dezenas de comissões existentes em todo o País, estarão presentes também, no terceiro dia de trabalho (29), representantes da Comissão Nacional da Verdade. Eles pretendem acertar as ações conjuntas, para que, no tempo em que ainda resta de trabalho desta Comissão, consiga apresentar resultados concretos, dar mais visibilidade e apresentar relatórios parciais, a fim de que a sociedade acompanhe e entenda os resultados concretos que estão sendo levantados no final desses dois anos de trabalho da Comissão Nacional da Verdade.

Porque, senão, vai frustrar a sociedade brasileira, particularmente aqueles que lutaram, resistiram e foram vítimas do regime civil militar.

Para isso, a sociedade se mobiliza, inclusive em apoio à possibilidade e à necessidade de revisão da Lei da Anistia. Por sinal, há um projeto de lei tramitando nesta Casa, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, no sentido de que esse encontro nacional vai trazer aporte, elementos, contribuições e, mais que isso, força política da sociedade civil brasileira na perspectiva do cumprimento integral de uma missão histórica da Comissão Nacional da Verdade e também das comissões que estão se dando no âmbito da sociedade civil.

Agradeço a atenção de todos os presentes e daqueles que nos assistem pela TV Câmara.

Dep. Federal Luiza Erundina de Sousa 

Foto: Agência Câmara

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Resgatar nossa utopia


*Texto colaborativo escrito pela dep. Luiza Erundina que faz parte do livro "O que é ser esquerda, hoje?"



Quero saudar a realização desta Conferência que ocorre num momento de grandes desafios para o país e para a vida diária do nosso continente e do mundo. Porque – na minha avaliação – temos que reconstruir o projeto humano que está comprometido por esse modelo globalizado de economia e por uma postura do nosso governo, que atentam contra as conquistas da humanidade e contra as conquistas da cidadania do Brasil e do planeta.

Precisamos ter coragem de resgatar o sonho e a utopia socialistas, sem mediações, sem meios-termos e sem conciliações, para que possamos cumprir o papel que nos cabe nos dias de hoje no Brasil e no mundo. Papel de preservar valores de liberdade, de fraternidade, de democracia radical, de justiça social, de respeito humano, de respeito à pluralidade e, sobretudo, de resgatar o projeto de transformação do país na perspectiva de ver implementados esses valores nas políticas de governo, nas relações sociais, políticas e econômicas. Relações estas que lamentavelmente se acham atingidas por uma unanimidade em torno de um discurso único que não respeita a pluralidade, a diversidade e o acúmulo que a história da esquerda construiu ao longo das décadas dos últimos dois séculos e que é isso que nos coloca em um profundo impasse, numa verdadeira crise que nos desafia e nos estimula a retomar nosso projeto histórico.

Recentemente, vivenciamos um triste episódio na Câmara dos Deputados, que foi a frustração de se realizar uma reforma política. Evidentemente, o que mais uma vez foi aprovado, a partir de uma proposta original frágil, não conseguiu ir muito além de mudanças nas regras eleitorais e normas partidárias. Na verdade, trata-se de remendos, aqui ou ali, que não tocam nem tocavam na essência das distorções estruturais do sistema político brasileiro e do Estado, o qual está desatualizado quanto à demanda de uma sociedade profundamente atingida por fatores internos e externos que tornam obsoletos os modelos, os padrões e as pretensas soluções para os grandes impasses do país e da sociedade.

Vimos enfrentando, nos últimos trinta anos, a globalização econômica e a revolução tecnológica e científica, as quais vêm alterando as relações entre o capital e o trabalho. O sistema de produção foi profundamente impactado pela incorporação de novas tecnologias que modificam inclusive a estrutura social e a composição das classes trabalhadoras. Tudo isso, evidentemente, coloca a necessidade de profundas e radicais mudanças do Estado brasileiro, das instituições políticas e da vida social para que um novo marco institucional responda aos grande impasses, aos graves problemas  e aos enormes desafios que se colocam para cada um de nós e, em particular, para os partidos políticos.

As representações políticas do nosso campo, da esquerda, não podem coonestar uma política que simplesmente reproduz a dominação e os privilégios e a concentração de poder em todos os sentidos. Desta forma, a nação brasileira se vê decepcionada, particularmente as esquerdas, diante de uma expectativa que se frustrou – um governo democrático e popular de esquerda que, evidentemente, não teria condições de fazer grandes rupturas porque as relações de força não se alteram nas últimas décadas, mas pelo menos se imaginava ser possível introduzir algumas cunhas no processo de mudança de cultura política, na forma de estabelecer a relação povo/governo, de estabelecer mecanismos de controle e de participação popular, para que, de fato, o compromisso de mudança começasse pela aliança do governo com os trabalhadores, setores populares e com a sociedade civil, que foram os grandes responsáveis para que chegássemos ao governo, dentro de um projeto centrado em uma perspectiva de mudanças estruturais no país, o que lamentavelmente não ocorreu.

Hoje, os setores mais esclarecidos do povo se veem numa situação absoluta de desesperança e nós não podemos permitir que esse sentimento nos contamine porque a desesperança é reacionária, é conservadora, nos imobiliza, nos tira a autoestima e a esperança coletiva de vida e por isso temos que, de novo, retomar  esse projeto a partir de um novo ciclo histórico social e que as bases e o ideal do socialismo se proponham como inspiração e razão de ser, com motivação que nos ponha em marcha junto ao povo, para que esse povo, novamente, resgate a sua autoconfiança e acredite de novo na sua força, porque o povo é quem muda.

Nenhum partido, nenhum governo muda, a não ser junto com o povo.

É preciso que se retome o curso da militância e se coloque junto ao povo com uma ferramenta pedagógica para ajudá-lo a resgatar a sua autoconsciência, a consciência do seu valor e dos seus direitos, e ser capaz de apontar um rumo, para que esse povo junto possa fazer as mudanças tão aguardadas, tão ansiadas e tão necessárias para nosso país.

Precisamos resgatar essa utopia, expressá-la no cotidiano da vida dos trabalhadores e trabalhadoras, das mulheres e dos homens, dos jovens, dos velhos e das crianças, dos brasileiros e brasileiras de um modo geral, no sentido de voltar a fazer com que as pessoas acreditem de novo que é possível mudar, que é possível conquistar cidadania para todos, que é possível garantir dignidade para homens e mulheres desse país.

Finalmente, permitam-me registrar que essa Conferência Nacional de Mulheres, tão desigualmente tratadas nesse país machista. Certamente, um partido de esquerda democrática precisa ter no seu ideário, na sua plataforma de lutas, no seu compromisso com a sociedade, a luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, negros e brancos, jovens e velhos, ou seja, igualdade e cidadania para todos.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Natal em Belém



Lembro-me com grande emoção da chegada das festas de fim de ano, em Belém, quando era criança. A comunidade inteira se mobilizava durante os dias e semanas que precediam a noite de Natal nos preparativos para a celebração do nascimento do Menino Jesus.

Famílias pobres como a minha faziam as contas para ver quanto sobrara da venda do algodão colhido na última safra para as despesas extras com a compra de uma muda nova de roupa para cada membro da família: vestido para a mãe e as meninas; calça e camisa para o pai e cada um dos filhos homens. Tudo muito simples, conforme nossas posses e como simples e pobre era o Menino que ia nascer numa manjedoura.

Após ansiosa espera, chegava finalmente a grande noite – a noite de Natal. A Vila de Belém toda engalanada; o manzape de farinha de mandioca, recheado com castanha-de-caju, assado no forno à lenha, já estava pronto, bem como os sequilhos de goma, verdadeira delícia que se desmanchava na boca da gente.

O mercado se enchia de bancas, montadas para a venda do que era trazido da roça durante a noite e o dia seguinte da festa. Tinha tudo o que quisesse comprar: feijão-de-corda e farinha de mandioca; broa, rapadura e cocada; alecrim, canela e fumo de rolo; gaiolas com passarinhos das mais variadas espécies alegravam a meninada que, em algazarra, corria solta entre as bancas espalhadas pelo mercado.

Dona Enedina, minha mãe, cafezeira respeitada, tinha sua banca num canto junto de uma das duas portas de entrada do mercado, onde vendiam café e bolos feitos por ela na véspera da grande noite.

Por outro lado, mestre Tonheiro, meu pai, celeiro famoso, por suas celas não machucarem o lombo dos animais, atendia seus fregueses num “quarto” que ficava numa das esquinas do mercado, onde vendia celas e arreios de couro; sandálias de “currilepe” e indumentária para vaqueiros.

No início da noite, meu pai reunia a filharada para distribuir moedas de poucos réis a cada um como se fosse presente de Papai Noel que naquele tempo, não existia para nós nem mesmo como fantasia infantil, tal era a dureza da vida real que não comportava devaneio nem ilusões, como ficou demonstrado no decorrer da vida adulta, sem natais e sem presentes.

Depois de brincarmos até não poder mais e termos gasto o último tostão na feira comprando seriguela, pé-de-moleque e rosário do coco catolé, voltávamos para junto de meu pai que já tinha espalhado couros pelo chão do “quarto” para nos deitarmos sobre eles, onde dormíamos até o raiar do Dia de Natal.

À meia noite, os que não estavam trabalhando na feira iam à Igreja Matriz assistir à “Missa do Galo”, celebrada pelo Pe. Antônio Anacleto, querido vigário da paróquia de Jesus, Maria e José, para comemorar aos pés do presépio o nascimento do Menino Jesus. Era o coroamento das festas de mais um Natal na Vila de Belém, em comemoração ao Natal, ocorrido há dois mil anos atrás em outra Belém, e que revolucionou o mundo e mudou profundamente os destinos da humanidade. 

*Publicado na Revista FELC - Março de 2012