*Publicado pelo Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) em Novembro de 2007
Boa-tarde a todos e a todas. Quero saudar os
membros desta Mesa, que, estou certa, vai agregar novos conhecimentos e
experiências sobre o tema, aos que já trouxeram os participantes das outras
mesas de debate.
Gostaria de saudar também o CDES e as outras
entidades que co-patrocinaram este evento, pela oportuna iniciativa.
Assim como o Moroni entendo que o que o Congresso
propõe não é a reforma política que o país precisa, mas, apenas, mudanças de
regras eleitorais e de normas partidárias, sem alterar o essencial do sistema
político brasileiro, com vistas a remover as causas estruturais das graves
distorções que ele apresenta.
O tema que cabe a esta mesa abordar refere-se à
reforma política sob a ótica da democracia representativa e a democracia direta
e participativa. Está, portanto, no centro deste debate a questão do poder e da
soberania popular.
Participei, como representante da minha bancada na
Câmara dos Deputados, da Comissão Especial da Reforma Política, que elaborou e
aprovou o Projeto de Lei que está em discussão naquela Casa. A Comissão
funcionou por mais de um ano e já no início dos trabalhos deliberou restringir-se
a aspectos passíveis de ser modificados mediante legislação ordinária, por
considerar a impossibilidade de se aprovar, no âmbito da Comissão Especial,
alterações do texto constitucional. Assim, os aspectos estruturais do sistema
político ficaram intocados. Por
isso, o Projeto de Lei que a Comissão aprovou
apresenta limitações, sendo, portanto, insuficiente para resolver os graves
problemas e distorções do sistema político brasileiro.
O argumento da Comissão, naquele momento, era de
que tínhamos que dar logo uma resposta à sociedade, que já acumulara enormes
frustrações com relação ao desempenho dos seus representantes no Congresso
Nacional. Era preciso, pois, responder à expectativa da sociedade o mais
rapidamente possível. Por isso, teria que se limitar à legislação
infra-constitucional. O resultado disso foi o projeto que teve como relator o
Deputado Ronaldo Caiado, do DEM de Goiás, e aprovado pela maioria dos
parlamentares que compunham a Comissão Especial. Entretanto, esse Projeto de
Reforma gerou insatisfações, tanto da parte dos que esperavam e queriam mais,
quanto dos que não aceitavam nem mesmo o pouco que se pretendia avançar. Alguns
afirmavam que aquela proposta seria mais um fator de frustração para a
sociedade, face, segundo eles, à insuficiência das medidas que propunha para
solucionar os graves problemas há muito tempo sem solução. Mesmo se aprovado na
íntegra, consideravam que não daria conta de responder a todas as questões
implicadas nas distorções do atual sistema político brasileiro.
Os aspectos que compõem a Proposta de Reforma
guardam entre si certa lógica e coerência, o que significa que aprovar um e
rejeitar um ou outro comprometerá os efeitos positivos da mudança, ou, até
mesmo, a inviabilizará. É o caso, por exemplo, de aprovar o financiamento
público de campanha e se rejeitar a votação em lista. Se isso ocorrer, além da
sobrevivência do “caixa 2”, induzirá o duplo financiamento de campanha, o
público e o privado, o que certamente será um desastre. O que temos visto na
Câmara nesses últimos dias nos deixa pessimistas quanto à aprovação de algum
ponto da proposta que significasse um primeiro passo na direção de uma reforma
política que o país precisa e espera.
Outrossim, uma autêntica reforma política poderá
levar a mudança de cultura política que, por sua vez, induziria os políticos a
mudar de comportamento, bem como, os partidos políticos e até mesmo os
eleitores. É necessário, pois, entender-se que a reforma política é um processo
capaz de suscitar mudança de concepções, de valores, e de atitude dos atores políticos
na sociedade.
O debate sobre a reforma política vem se dando na
sociedade há algum tempo, através de organizações populares que se articulam e
se organizam em frentes parlamentares, com participação popular, em vários
estados e municípios brasileiros.
A discussão que faz a sociedade sobre a reforma
política se baseia na concepção de soberania popular que supõe democracia
representativa e democracia direta e, como tal, vai muito além de mudanças de
regras eleitorais e normas partidárias, exigindo, portanto, mudanças
estruturais do sistema político. Entende, pois, que não existe verdadeira democracia
sem democracia direta e democracia participativa. Assim, o projeto em debate na
Câmara dos Deputados não corresponde à expectativa da sociedade.
Não obstante, o debate que ora ocorre no âmbito do
legislativo estimula o envolvimento dos setores organizados da sociedade,
através da “Frente Parlamentar pela Reforma Política com Participação Popular”,
integrada por parlamentares dos diferentes partidos políticos, e por representantes
de entidades e movimentos da sociedade civil organizada. A Frente se reúne regularmente
para acompanhar as discussões da matéria na Câmara dos Deputados e para elaborar
Emendas ao Projeto de Lei a serem apresentadas e defendidas por alguns
parlamentares.
Mantendo-se esse processo de mobilização e de
participação popular em torno da Reforma Política, mais cedo ou mais tarde ela
se viabilizará, a exemplo do que ocorreu com os avanços e conquistas inscritos
na Constituição Federal de 1988.
A Constituição de 1988, denominada de “Constituição
Cidadã”, foi a que mais avançou em termos de democracia direta e de democracia
participativa, dentre todas as Constituições brasileiras, inclusive a de 1946.
Criou mecanismos de participação popular, em respeito à soberania popular
prevista no Artigo 1º, parágrafo único, que estabelece que “Todo o poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos da Constituição”.
Esses avanços da Constituição de 1988, frente às
outras constituições brasileiras, se devem à participação da sociedade, que se
mobilizou e se organizou para participar das lutas pela redemocratização do
país e do processo de construção de um novo marco institucional para reger os
destinos da nação brasileira.
Após a promulgação da Constituição de 1988, face
aos resultados da primeira eleição direta para Presidente da República e os
percalços que todos conhecemos, a sociedade se desmobilizou, talvez porque
acreditasse que bastava as conquistas constarem da lei maior, para que
estivessem asseguradas. Além disso, contribuíram também para a desmobilização
dos setores populares as exigências da realidade da maioria das pessoas. A não
ser um ou outro grupo se manteve atuante pela preservação das conquistas
inscritas na Constituição e por sua ampliação.
Por isso, importantes conquistas e avanços
previstos no texto da Constituição ainda não foram efetivados por falta de
regulamentação, através de legislação infraconstitucional, e enquanto isso não
se fizer, os direitos conquistados ficam congelados, sob o risco de perdas e
retrocessos.
Vale destacar, entre outras conquistas importantes
que ainda não tiveram eficácia, o artigo 14 da Constituição Federal, que dispõe
sobre os mecanismos de democracia direta, ou seja, plebiscito, referendo e
projeto de lei de iniciativa popular, até hoje não regulamentado por omissão do
poder legislativo e por falta de pressão da sociedade sobre seus representantes
para que o façam. Até mesmo a prerrogativa da sociedade de apresentar projeto
de lei de iniciativa popular, previsto na Constituição, apresenta um tal grau
de exigência e complexidade que torna sua aplicação praticamente inviável. Até
hoje, um único projeto de lei de iniciativa popular chegou a ser aprovado pelo
Congresso Nacional e, mesmo assim, levou mais de treze anos para virar lei, a
que criou o Fundo Nacional de Habitação Popular.
Em 1999, no início do meu primeiro mandato de
Deputada Federal, apresentei uma Proposta de Emenda Constitucional, a PEC nº
02/1999, que propõe a simplificação e a redução das exigências constitucionais,
no sentido de viabilizar o exercício dessa prerrogativa pela sociedade civil. A
aprovação dessa PEC garantirá a apropriação, pela sociedade, desse importante mecanismo
de democracia participativa junto ao Poder Legislativo. Entretanto, há oito
anos essa PEC está paralisada, aguardando que a Presidência da Câmara dos
Deputados instale a Comissão Especial para apreciá-la e votá-la. Se aprovada
pela Comissão Especial, estará em condições de ser pautada para discussão e
votação no plenário da Câmara, onde será submetida a duas votações. Caso seja aprovada,
será encaminhada ao Senado Federal, onde também passará por dois turnos de votação.
Além disso, sua aprovação tanto na Câmara como no Senado exige 3/5 de votos a
favor, do total dos membros de cada uma das Casas. Portanto, é um processo
bastante complexo e demorado e, certamente, a votação da matéria enfrentará
grande resistência dos parlamentares que se sentem ameaçados pela possibilidade
de terem suas prerrogativas partilhadas com o povo, que, segundo nossa
Constituição, é a fonte e a origem do poder, enquanto que os mandatos dos
parlamentares são obtidos por delegação, através do voto dos eleitores. Lamentavelmente,
nem todos aceitam essa determinação constitucional, e os que ignoram esse
princípio democrático, agem e se comportam como se fossem donos dos mandatos,
têm verdadeira ojeriza da participação popular e se consideram suficientes como
representantes do povo. Não é por acaso que, após 19 anos de vigência da Constituição
de 1988, seu artigo 14, que trata dos mecanismos de democracia direta, ainda não
foi regulamentado pelo Congresso Nacional. Há quase 20 anos, portanto, a
soberania popular é negada e usurpada de seu real e exclusivo detentor, o povo
brasileiro.
Enquanto persistir esse quadro, não podemos dizer
que vivemos numa verdadeira democracia. Daí a premência por uma reforma
política que enfrente a questão da democracia direta como condição essencial
para se resolver as distorções do sistema político brasileiro e a grave crise
de representação. Os sucessivos escândalos que atingem deputados e senadores
são sintomas dessa crise, que leva à perda de legitimidade e de credibilidade dos
representantes do povo, significando, assim, uma crise de representação e,
conseqüentemente, um risco para a democracia.
As tentativas de reforma política, no âmbito do
Congresso Nacional, frustraram-se todas, até agora, o que sugere a necessidade
de uma ampla e permanente mobilização da sociedade civil organizada para
pressionar o Congresso e exigir uma reforma política digna desse nome, ou seja,
que repense o sistema político como um todo e que assegure a democracia plena
que supõe a representação e a participação direta dos cidadãos na posse e no
exercício do poder.
Num louvável esforço para preencher esse vazio
jurídico, a OAB e a CNBB entraram com um projeto de lei de iniciativa popular,
na Câmara dos Deputados, por meio da Comissão de Legislação Participativa -
CLP, no ano de 2004, visando à regulamentação do artigo 14 da Constituição
Federal, que cria os mecanismos de democracia direta: plebiscito, referendo e
projeto de lei de iniciativa popular. O mesmo encontra-se parado na Comissão de
Constituição e Justiça daquela Casa. Cansados de esperar, os proponentes
resolveram apresentar no Senado Federal, através do Senador Eduardo Suplicy, no
ano de 2006, projeto semelhante, que também está parado na Comissão de Justiça
do Senado.
Isso ocorre por desinteresse dos parlamentares, e
por falta de pressão da sociedade, no sentido de impor a vontade e os anseios
da população aos seus representantes no parlamento.
A maioria dos Deputados e Senadores não considera a
importância da democracia direta e da democracia participativa como condição
essencial à consolidação da democracia.
Quando o Presidente da Câmara, o ex-deputado Aécio
Neves, criou, no ano de 2001, mais uma comissão permanente, a CLP, que
representa um espaço de democracia participativa junto ao Legislativo,
possibilitou a construção de uma ponte entre esse poder e a sociedade civil
organizada, à qual se conferiu a prerrogativa de apresentar sugestões de projetos
de lei sobre matérias de seu interesse. A CLP representa uma conquista
importante da cidadania e que suscitou iniciativas semelhantes no Senado
Federal e em Assembléias Legislativas de alguns Estados da Federação, e em várias
Câmaras de Vereadores de importantes municípios brasileiros.
Eu tive o privilégio e a responsabilidade de ser a
primeira presidenta da CLP da Câmara dos Deputados, cabendo-me a tarefa de
estruturá-la e colocá-la em funcionamento num curtíssimo espaço de tempo, pois
a minha presidência, por determinação regimental, dispunha de apenas quatro
meses para implementar um projeto inovador, ousado e que despertava enorme
desconfiança dos parlamentares.
Essa Comissão é permanentemente ameaçada de extinção,
de fusão com outras Comissões, ou de diminuição de suas prerrogativas, como
ocorreu, por exemplo, em 2006, quando uma Resolução do Congresso Nacional,
aprovada no final daquele ano, retirou da CLP o poder de apresentar, mediante
sugestões de organizações sociais, Emendas à Lei de Diretrizes Orçamentárias e,
conseqüentemente, à Lei Orçamentária Anual – LOA. Representou, sem dúvida
nenhuma, uma perda inestimável em termos do empoderamento dos setores
organizados da sociedade, que desenvolvem projetos sociais de relevante
interesse para a população mais pobre. O atual presidente, deputado Eduardo
Amorim, e os demais membros da Comissão estão empenhados em reverter aquela
injusta decisão do Congresso Nacional, que, de forma autoritária, retira um direito
conquistado pelos cidadãos brasileiros, significando um enorme retrocesso do
ponto de vista democrático. Esse fato evidencia o quanto o país ainda está
longe de ser uma verdadeira democracia.
Outrossim, por ser uma das últimas comissões
permanentes, criadas na Câmara, e, de acordo com o princípio da
proporcionalidade, é uma das últimas escolhas possíveis das bancadas partidárias
menores. Assim, alguns deputados, que têm como única opção a CLP, se sentem discriminados
pelas suas respectivas lideranças, até descobrirem a novidade e a riqueza da experiência
no contato com os movimentos que levam suas propostas à Comissão, debatendo-as em
audiências públicas e seminários temáticos de grande valor e oportunidade.
Com efeito, enquanto não se regulamenta o
dispositivo constitucional que trata dos mecanismos de democracia direta e de
democracia participativa, a CLP preenche esse vazio jurídico no que se refere à
iniciativa popular legislativa, o que, sem dúvida, é muito importante!
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