1) A senhora tem uma carreira política consolidada. Ao
longo da sua trajetória, foi alvo de preconceitos? Nesses anos, como a senhora
avalia a participação e o crescimento das mulheres nos espaços de poder?
Durante minha trajetória política fui, sim,
alvo de preconceitos, não só por ser mulher, mas também por ser nordestina,
solteira e de esquerda. Acho até que as três últimas condições foram mais
motivo de preconceito do que o fato de eu ser mulher.
Sempre digo que só faltava eu ser negra
para completar o quadro que gerou tanto preconceito e discriminação, e que
seria bom que eu o fosse, pois teria mais uma razão para lutar.
No entanto, não me senti nem ofendida nem
humilhada. Ao contrário disso, reagi, juntando à disputa por poder político
para as mulheres, a luta ideológica e cultural contra todo tipo de preconceito
e discriminação. E esta é uma luta permanente e sem trégua.
Quanto à participação das mulheres nestes
anos, avalio que cresceu, não tanto em termos de ocupação de espaços de poder
institucional, mas, sim, como presença ativa nas lutas e nos movimentos da
sociedade civil.
A meu ver, o emponderamento das mulheres
está, em certa medida, condicionado pela cultura partidária marcada por
autoritarismo, machismo e coronelismo dos dirigentes que controlam com
mão-de-ferro os aparelhos partidários com o objetivo de se perpetuarem no
poder.
Por outro lado, as mulheres não se dispõem
a disputar com os homens, em seus partidos, os espaços de poder, contribuindo,
dessa forma, para que sejam sempre eles a ocuparem esses espaços.
Tanto é assim que,
no atual quadro partidário brasileiro, são poucas as mulheres em cargos de
direção. O mesmo ocorre com os espaços da esfera pública, pouquíssimos ocupados
por mulheres, exatamente porque os dirigentes homens as excluem quando têm a
oportunidade de indicar alguém dos seus partidos para ocupar algum cargo nas
instâncias de poder.
Portanto, há muito ainda a ser feito para
reverter o enorme “déficit democratico” que existe no Brasil e que se expressa
pela absurda e injusta exclusão das mulheres dos espaços de poder.
Diante
do fato de que mais da metade da população brasileira estar excluída das
decisões políticas, até mesmo as que mais diretamente lhes dizem respeito, não
podemos afirmar que temos verdadeira democracia.
Face a essa realidade, convém destacar a
importância da criação de organizações políticas de mulheres, com caráter
multipartidário, como os “Comitês Multipartidários de Mulheres” e o “Fórum
Nacional de Instâncias de Mulheres de Partidos Políticos”. São espaços que
proporcionam discussões políticas de comum interesse das mulheres, e onde se
constroem estratégias de ação política, seja das instâncias partidárias de
mulheres em seus respectivos partidos, seja de atuação pluripartidária na luta
política geral da sociedade em torno, sobretudo, das questões de gênero.
Essas organizações representam um avanço e
precisam se consolidar. Devem ter autonomia e independência para não sofrerem
solução de continuidade no curso dos processos político partidário e eleitoral,
bem como na sucessão de governos.
2. Como surgiu a inciativa da PEC 590/2006? A
senhora poderia descrever brevemente o processo de tramitação?
Outro indicador da absurda exclusão das
mulheres brasileiras dos espaços de poder é o fato de que, em mais de 180 anos
do poder legislativo no Brasil, nunca uma deputada ter ocupado um cargo de
titular na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados.
Em todo esse tempo, quatro deputadas ocuparam apenas cargos de
suplência.
Procurando corrigir mais essa discriminação
contra as mulheres, apresentei, em 2006 a PEC 590/2006 que obriga que pelo
menos um cargo de titular das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado seja
ocupado por uma parlamentar.
Somente em 2008, quando o Deputado Michel
Temer assumiu a Presidência da Câmara, foi criada a Comissão Especial para
analisar a Proposta de Emenda. Foram eleitas: Presidente da Comissão a Deputada
Emília Fernandes (PT/RS) e Relatora a Deputada Rose de Freitas (PMDB?ES
Após alguns meses de trabalho, durante os
quais várias audiências públicas importantes foram realizadas, a Comissão
aprovou por unanimidade o Relatório apresentado pela Relatora.
A proposta ainda aguarda sua discussão e
votação na Câmara, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver três
quintos dos votos dos membros da Casa. Em seguida, será encaminhada para o
Senado onde também terá que seguir o mesmo rito e cumprir as mesmas exigências.
Caso seja alterada pelo Senado, retorna à Câmara para novas discussão e votação
também em dois turnos e, finalmente será considerada aprovada se conseguir três
quintos dos votos dos Deputados e Deputadas.
Como se vê, é um processo de votação
bastante complexo por tratar-se de Emenda Constitucional. Além disso, sendo
matéria que objetiva ampliar a participação das mulheres nos espaços de poder
das Casas do Congresso Nacional, enfrenta, como sempre ocorre, forte
resistência da maioria dos parlamentares. É preciso, pois, que os movimentos de
mulheres se mobilizem para pressionar Deputados e Senadores, no sentido de que
a proposta seja aprovada, impreterivelmente, até meados de 2010, pois, sendo 2010
um ano eleitoral, trará dificuldades adicionais à sua votação e aprovação.
Ademais, as próximas eleições dos membros
das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado serão no primeiro dia da nova
legislatura, ou seja, 1º de fevereiro de 2011. Assim sendo, se a PEC tiver sido
aprovada e promulgada, a participação de parlamentares mulheres nos órgãos de
direção das duas Casas estará assegurada, o que será uma valiosa conquista que
corrigirá uma inominável injustiça que, historicamente, o parlamento brasileiro
comete contra as mulheres além de ser uma discriminação que desqualifica a
democracia no Brasil.
2)
Qual
é a importância da Lei de Cotas?
A existência de uma Lei de Cotas
representa, sem dúvida, uma importante conquista e um avanço, não obstante ter
sido, na prática,
uma conquista meramente formal, pois não alterou significativamente a
situação de sub-representação das mulheres nos espaços de poder. Isso porque os
partidos políticos não a cumpriram, até agora, sem que sofressem qualquer
sanção por não fazê-lo. Ainda bem que essa situação poderá mudar com a
mini-reforma eleitoral, aprovada pelo Congresso Nacional no final de 2008, que
prevê que 5% do Fundo Partidário serão destinados à criação e manutenção de
programas de promoção e difusão da participação política das mulheres; de 10%
do
tempo de propaganda partidária e
obrigatoriedade do preenchimento, pelos partidos políticos, da reserva de, no
mínimo, 30% de vagas para candidatas mulheres.
Esses percentuais estão, certamente, muito
aquém dos que eram reivindicados pelas mulheres, mas nem por isso deixam de
significar avanço e importante conquista, que devem ser creditados ao empenho
das bancadas femininas da Câmara e do Senado e do “Comitê Tripartite” que
pressionaram os parlamentares dessas
cotas, quando estavam sendo discutidas e votadas em cada uma das Casas. Foi, certamente,
em razão dessa pressão e de muita negociação que a forte resistência da maioria
dos parlamentares fosse quebrada, pois não têm a compreensão da importância da
participação política das mulheres para a sociedade e para a democracia. Muito
pelo contrário, eles vêem a política de cotas a favor das mulheres como uma
ameaça ao domínio dos homens nos espaços de poder.
A meu ver, a reversão desse quadro de
dominação masculina e de exclusão política das mulheres supõe, ainda, um longo
e penoso trabalho de educação política das mulheres e de conscientização sobre
o seu papel na sociedade, enquanto sujeitos
de direitos e deveres. Sem isso, estaremos sempre a depender da política
de cotas que, por si mesma, é um indicador da existência de desigualdade e de discriminação
de gênero na sociedade.Esse é o maior desafio que, desde sempre, nos está
colocado.
4.
O substitutivo aprovado
prevê 5% do fundo partidário para promoção das políticas públicas relativas às
mulheres, 10% do tempo de propaganda partidária e a obrigatoriedade do
preenchimento da reserva de vagas de 30% pelos partidos. Apesar dos avanços, os
percentuais aprovados estão abaixo dos que eram reivindicados pelas mulheres.
Como foi a aprovação dessas questões? Foi necessária muita negociação ou, em
sua avaliação, os parlamentares estão mais conscientizados sobre a importância
da participação das mulheres na política?
Realmente,
os percentuais aprovados não correspondem ao que querem as mulheres, nem aos
projetos de lei de iniciativa de Deputadas, que tramitam na Câmara há bastante
tempo. Mesmo assim, a maioria de Deputados e Senadores se negou a votar pela
sua aprovação. Não fosse a determinação das bancadas femininas, do movimento de
mulheres e do “Comitê Multipartidário”, sequer essa limitada conquista teria
sido alcançada. Só com muita negociação e forte pressão é que os parlamentares
foram obrigados a ceder.
Lamentavelmente,
eles não têm consciência da importância da participação política das mulheres.
Pelo contrário, encaram essa questão com muito preconceito e discriminação, além de se sentirem ameaçados
diante de qualquer proposta que pretenda ampliar a presença das mulheres na
esfera pública e nos espaços de poder.
5.
A senhora acredita que os partidos cumprirão essas determinações?
Pela minha experiência, não acredito que os
partidos cumprirão essas determinações legais por iniciativa própria. Vai
ser necessário que as mulheres dos
diferentes partidos se organizem, se articulem e se
mobilizem
para pressionar coletiva e pluripartidariamente as direções dos partidos,
acionando, se necessário, o Poder Judiciário para que a lei seja cumprida. Isso
terá que ser feito quanto antes, para que as mulheres, em seus respectivos partidos,influenciem
e participem da definição das normas e procedimentos necessários à aplicação da
lei.
6.
O percentual da presença feminina no nosso Congresso é uma das menores do
mundo, com apenas 9% de participação, ocupando a 141ª colocação num ranking de
188 países. Como a senhora avalia esses números?
Trata-se
de um grave problema, cuja solução depende não só das mulheres, mas da
sociedade como um todo. É uma prova de que a cultura machista e patriarcal
continua determinando as relações sociais e políticos na sociedade brasileira.
Esses
dados revelam também a pouca eficácia da política de cotas, pelo menos nos
termos em que se colocou até hoje, representando apenas uma conquista formal
que não veio acompanhada de condições objetivas que contribuíssem para elevar o
nível de politização, participação e de organização política das mulheres.
De
todas as barreiras à participação das mulheres, a da política é, sem dúvida, a
mais difícil de transpor, exatamente por ser a política o espaço das decisões e
do poder e, como tal, tem sido privilégio dos homens.
Enquanto
essa situação perdurar, não podemos dizer que vivemos em uma verdadeira
democracia. Por isso, é premente a realização de
ampla e profunda Reforma Política que,
entre outras mudanças, torne efetivas, além da democracia representativa, a
democracia direta e a participativa, como condição para se corrigirem as
imperfeições e distorções do sistema político brasileiro e a grave crise de
representação que vivemos atualmente.
Em
síntese, a política é o meio mais eficaz para se transformar a realidade no
interesse das mulheres e dos demais setores da sociedade excluídos das decisões
políticas. Por isso, devemos nos inserir no mundo da política, o que exige
formação e preparo para enfrentarmos discriminação e preconceito por ousarmos
disputar o poder com os homens, campo esse que, historicamente, tem sido quase
que, exclusivamente, território deles. Esse é um dos maiores desafios que temos
a superar na militância político-partidária.
Com
efeito, o número de mulheres que militam na política ainda é muito pequeno por
vários motivos. Primeiro, porque a maioria ainda não rompeu com os
condicionamentos culturais, sociais e econômicos que dificultam seu acesso à
política e às esferas de poder. Segundo, porque o machismo presente nas
relações familiares, no mundo do trabalho, nos partidos políticos, nas
organizações religiosas, na sociedade em geral contribui para excluir as
mulheres dos espaços de poder, desestimulando, assim, sua participação
política. Terceiro, porque a maioria das mulheres ainda não tomou plena
consciência do seu papel na sociedade; dos seus direitos de cidadania e da
participação política como condição para garantir seus direitos.
Com
vistas a estimular essa participação, é preciso promover a formação e a
capacitação política das mulheres e propiciar-lhes condições objetivas para que possam disputar em igualdade de
condições com os homens os espaços de poder. As cotas referentes aos recursos
do Fundo Partidário e ao tempo gratuito de rádio e televisão dos partidos, destinados
às mulheres, colaborarão nesse sentido.
A
sociedade brasileira certamente ganharia muito com a inclusão de mais da metade
da população na vida política, pois passaria a contar com a participação das
mulheres nas decisões e na busca de soluções para os graves problemas do país,
além de contribuir para elevar o nível de democracia e de civilização no
Brasil.
7. Após a aprovação da chamada mini-reforma,
quais são os próximos passos, especialmente, no que diz respeito à participação
das mulheres na política?
Entre
outros, os próximos passos poderiam ser os seguintes:
·
Institucionalizar, estruturar e fortalecer
as organizações pluripartidárias de mulheres, tais como: Os “Comitês
Multipartidários de Mulheres” e o “Fórum Nacional de Mulheres de Instâncias de
Partidos Políticos”.
·
Definir, conjuntamente, através das
organizações pluripartidárias, estratégias de intervenção das instâncias de
mulheres em seus respectivos partidos, tendo em vista o cumprimento das
determinações da Lei nº 12.034, de 29 de setembro de 2009, particularmente as
referentes às cotas.
·
Analisar a possibilidade e a conveniência
de se criarem um Fundo pluripartidário e uma entidade de mulheres com a
finalidade de gerenciarem os recursos provenientes dos repasses referentes aos
5% do Fundo Partidário.
·
Construir uma proposta unitária para
aplicação da Lei sobre cotas, a ser apresentada e defendida, junto às direções
dos partidos políticos, pelos organismos pluripartidários de mulheres.
·
Analisar a possibilidade e a conveniência
de se criar uma entidade com a finalidade de promover a formação política de
mulheres, com caráter pluripartidário e de educação permanente, visando
capacitar mulheres para a militância política, a disputa, a conquista e o
exercício do poder, numa perspectiva de
gênero.
8.
Como a senhora avalia a atuação da “Comissão Tripartite” instituída para a
revisão da Lei 9.504/1997?
Foi
muito importante sobretudo porque construiu um anteprojeto de reforma política
de consenso entre representantes do Governo, do parlamento e dos movimentos de
mulheres, incorporando várias propostas que tramitam na Câmara dos Deputados,
algumas, inclusive, de autoria do Governo, outras, de Deputados e ainda outras da Frente Parlamentar pela Reforma Política
com Participação Popular.
Contudo,
os trabalhos da Comissão foram atropelados pela Câmara dos Deputados que criou,
sem qualquer discussão, um grupo de Trabalho, composto por representantes de
todos os partidos com bancadas na Casa, para elaborar um projeto de
mini-reforma eleitoral.
A
bancada feminina da Câmara reinvidicou e conseguiu que duas representantes suas
(uma titular e uma suplente) integrassem o grupo de Trabalho para apresentarem
e defenderem as propostas de interesse das mulheres.
O
fato é que as Deputadas que representavam a bancada ficaram isoladas no Grupo e
as propostas que apresentaram sofreram forte resistência dos outros Deputados. As
propostas das mulheres não contaram sequer com o apoio dos representantes
daqueles partidos que, por
presuposto, seriam solidários com a luta
das mulheres por seus direitos políticos.
Da
parte dos representantes dos partidos de direita, houve, inclusive, até atitudes agressivas e manifestações de
resistência e de intolerância. O fato é que, quando se trata de disputa de
poder, os homens se aliam e se colocam acima de quaisquer divergências
político-ideológicas, de modo a impedir que as mulheres tenham acesso aos
espaços de poder.
Apesar
disso e graças à atuação das bancadas
femininas e “Comissão Tripartite”, junto ao Grupo de Trabalho e às lideranças
partidárias da Câmara e do Senado, foram aprovadas as cotas já mencionadas, o
que representou apenas uma conquista limitada frente ao que reivindicavam as
mulheres.
Finalmente,
outro aspecto positivo a registrar a respeito da atuação da “Comissão
Tripartite” foi o fato de ter elaborado
uma proposta de Reforma Política que, além dos aspectos relacionados às
questões de gênero, aborda vários outros, o que torna a proposta abrangente
como convêm a uma verdadeira reforma política, capaz de corrigir as
imperfeições e de eliminar as graves distorções do sistema político brasileiro.
Por
tudo isso, minha avaliação do trabalho realizado pela “Comissão Tripartite” é
positiva e considero que deveria ter continuidade para estimular o debate da
proposta pela sociedade, pois só assim se acumulará a força política necessária
para que o próximo Congresso Nacional seja pressionado a discuti-la e votá-la.
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