Discursos

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Entrevista de Luiza Erundina à Secretaria de Políticas para Mulheres



1)    A senhora tem uma carreira política consolidada. Ao longo da sua trajetória, foi alvo de preconceitos? Nesses anos, como a senhora avalia a participação e o crescimento das mulheres nos espaços de poder?
  
Durante minha trajetória política fui, sim, alvo de preconceitos, não só por ser mulher, mas também por ser nordestina, solteira e de esquerda. Acho até que as três últimas condições foram mais motivo de preconceito do que o fato de eu ser mulher.

Sempre digo que só faltava eu ser negra para completar o quadro que gerou tanto preconceito e discriminação, e que seria bom que eu o fosse, pois teria mais uma razão para lutar.

No entanto, não me senti nem ofendida nem humilhada. Ao contrário disso, reagi, juntando à disputa por poder político para as mulheres, a luta ideológica e cultural contra todo tipo de preconceito e discriminação. E esta é uma luta permanente e sem trégua.

Quanto à participação das mulheres nestes anos, avalio que cresceu, não tanto em termos de ocupação de espaços de poder institucional, mas, sim, como presença ativa nas lutas e nos movimentos da sociedade civil.

A meu ver, o emponderamento das mulheres está, em certa medida, condicionado pela cultura partidária marcada por autoritarismo, machismo e coronelismo dos dirigentes que controlam com mão-de-ferro os aparelhos partidários com o objetivo de se perpetuarem no poder.

Por outro lado, as mulheres não se dispõem a disputar com os homens, em seus partidos, os espaços de poder, contribuindo, dessa forma, para que sejam sempre eles a ocuparem esses espaços.                                                                                     Tanto é assim que, no atual quadro partidário brasileiro, são poucas as mulheres em cargos de direção. O mesmo ocorre com os espaços da esfera pública, pouquíssimos ocupados por mulheres, exatamente porque os dirigentes homens as excluem quando têm a oportunidade de indicar alguém dos seus partidos para ocupar algum cargo nas instâncias de poder.

Portanto, há muito ainda a ser feito para reverter o enorme “déficit democratico” que existe no Brasil e que se expressa pela absurda e injusta exclusão das mulheres dos espaços de poder.

       Diante do fato de que mais da metade da população brasileira estar excluída das decisões políticas, até mesmo as que mais diretamente lhes dizem respeito, não podemos afirmar que temos verdadeira democracia.

Face a essa realidade, convém destacar a importância da criação de organizações políticas de mulheres, com caráter multipartidário, como os “Comitês Multipartidários de Mulheres” e o “Fórum Nacional de Instâncias de Mulheres de Partidos Políticos”. São espaços que proporcionam discussões políticas de comum interesse das mulheres, e onde se constroem estratégias de ação política, seja das instâncias partidárias de mulheres em seus respectivos partidos, seja de atuação pluripartidária na luta política geral da sociedade em torno, sobretudo, das questões de gênero.

Essas organizações representam um avanço e precisam se consolidar. Devem ter autonomia e independência para não sofrerem solução de continuidade no curso dos processos político partidário e eleitoral, bem como na sucessão de governos.
  
2. Como surgiu a inciativa da PEC 590/2006? A senhora poderia descrever brevemente o processo de tramitação?

Outro indicador da absurda exclusão das mulheres brasileiras dos espaços de poder é o fato de que, em mais de 180 anos do poder legislativo no Brasil, nunca uma deputada ter ocupado um cargo de titular na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados.                                                                              Em todo esse tempo, quatro deputadas ocuparam apenas cargos de suplência.

Procurando corrigir mais essa discriminação contra as mulheres, apresentei, em 2006 a PEC 590/2006 que obriga que pelo menos um cargo de titular das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado seja ocupado por uma parlamentar.
Somente em 2008, quando o Deputado Michel Temer assumiu a Presidência da Câmara, foi criada a Comissão Especial para analisar a Proposta de Emenda. Foram eleitas: Presidente da Comissão a Deputada Emília Fernandes (PT/RS) e Relatora a Deputada Rose de Freitas (PMDB?ES

Após alguns meses de trabalho, durante os quais várias audiências públicas importantes foram realizadas, a Comissão aprovou por unanimidade o Relatório apresentado pela Relatora.

A proposta ainda aguarda sua discussão e votação na Câmara, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver três quintos dos votos dos membros da Casa. Em seguida, será encaminhada para o Senado onde também terá que seguir o mesmo rito e cumprir as mesmas exigências. Caso seja alterada pelo Senado, retorna à Câmara para novas discussão e votação também em dois turnos e, finalmente será considerada aprovada se conseguir três quintos dos votos dos Deputados e Deputadas.
  
Como se vê, é um processo de votação bastante complexo por tratar-se de Emenda Constitucional. Além disso, sendo matéria que objetiva ampliar a participação das mulheres nos espaços de poder das Casas do Congresso Nacional, enfrenta, como sempre ocorre, forte resistência da maioria dos parlamentares. É preciso, pois, que os movimentos de mulheres se mobilizem para pressionar Deputados e Senadores, no sentido de que a proposta seja aprovada, impreterivelmente, até meados de 2010, pois, sendo 2010 um ano eleitoral, trará dificuldades adicionais à sua votação e aprovação.

Ademais, as próximas eleições dos membros das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado serão no primeiro dia da nova legislatura, ou seja, 1º de fevereiro de 2011. Assim sendo, se a PEC tiver sido aprovada e promulgada, a participação de parlamentares mulheres nos órgãos de direção das duas Casas estará assegurada, o que será uma valiosa conquista que corrigirá uma inominável injustiça que, historicamente, o parlamento brasileiro comete contra as mulheres além de ser uma discriminação que desqualifica a democracia no Brasil.

2)    Qual é a importância da Lei de Cotas?

A existência de uma Lei de Cotas representa, sem dúvida, uma importante conquista e um avanço, não obstante ter sido, na prática,                                                                       uma conquista meramente formal, pois não alterou significativamente a situação de sub-representação das mulheres nos espaços de poder. Isso porque os partidos políticos não a cumpriram, até agora, sem que sofressem qualquer sanção por não fazê-lo. Ainda bem que essa situação poderá mudar com a mini-reforma eleitoral, aprovada pelo Congresso Nacional no final de 2008, que prevê que 5% do Fundo Partidário serão destinados à criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres; de 10% do
tempo de propaganda partidária e obrigatoriedade do preenchimento, pelos partidos políticos, da reserva de, no mínimo, 30% de vagas para candidatas mulheres.
       
Esses percentuais estão, certamente, muito aquém dos que eram reivindicados pelas mulheres, mas nem por isso deixam de significar avanço e importante conquista, que devem ser creditados ao empenho das bancadas femininas da Câmara e do Senado e do “Comitê Tripartite” que pressionaram os  parlamentares dessas cotas, quando estavam sendo discutidas e votadas em cada uma das Casas. Foi, certamente, em razão dessa pressão e de muita negociação que a forte resistência da maioria dos parlamentares fosse quebrada, pois não têm a compreensão da importância da participação política das mulheres para a sociedade e para a democracia. Muito pelo contrário, eles vêem a política de cotas a favor das mulheres como uma ameaça ao domínio dos homens nos espaços de poder.

        A meu ver, a reversão desse quadro de dominação masculina e de exclusão política das mulheres supõe, ainda, um longo e penoso trabalho de educação política das mulheres e de conscientização sobre o seu papel na sociedade, enquanto sujeitos  de direitos e deveres. Sem isso, estaremos sempre a depender da política de cotas que, por si mesma, é um indicador da existência de desigualdade e de discriminação de gênero na sociedade.Esse é o maior desafio que, desde sempre, nos está colocado. 

4. O substitutivo aprovado prevê 5% do fundo partidário para promoção das políticas públicas relativas às mulheres, 10% do tempo de propaganda partidária e a obrigatoriedade do preenchimento da reserva de vagas de 30% pelos partidos. Apesar dos avanços, os percentuais aprovados estão abaixo dos que eram reivindicados pelas mulheres. Como foi a aprovação dessas questões? Foi necessária muita negociação ou, em sua avaliação, os parlamentares estão mais conscientizados sobre a importância da participação das mulheres na política?

         Realmente, os percentuais aprovados não correspondem ao que querem as mulheres, nem aos projetos de lei de iniciativa de Deputadas, que tramitam na Câmara há bastante tempo. Mesmo assim, a maioria de Deputados e Senadores se negou a votar pela sua aprovação. Não fosse a determinação das bancadas femininas, do movimento de mulheres e do “Comitê Multipartidário”, sequer essa limitada conquista teria sido alcançada. Só com muita negociação e forte pressão é que os parlamentares foram obrigados a ceder.

         Lamentavelmente, eles não têm consciência da importância da participação política das mulheres. Pelo contrário, encaram essa questão com muito preconceito e  discriminação, além de se sentirem ameaçados diante de qualquer proposta que pretenda ampliar a presença das mulheres na esfera pública e nos espaços de poder.

5. A senhora acredita que os partidos cumprirão essas determinações?

Pela minha experiência, não acredito que os partidos cumprirão essas determinações legais por iniciativa própria. Vai ser  necessário que as mulheres dos diferentes partidos se organizem, se articulem e se
mobilizem para pressionar coletiva e pluripartidariamente as direções dos partidos, acionando, se necessário, o Poder Judiciário para que a lei seja cumprida. Isso terá que ser feito quanto antes, para que  as mulheres, em seus respectivos partidos,influenciem e participem da definição das normas e procedimentos necessários à aplicação da lei.
  
6. O percentual da presença feminina no nosso Congresso é uma das menores do mundo, com apenas 9% de participação, ocupando a 141ª colocação num ranking de 188 países. Como a senhora avalia esses números?

             Trata-se de um grave problema, cuja solução depende não só das mulheres, mas da sociedade como um todo. É uma prova de que a cultura machista e patriarcal continua determinando as relações sociais e políticos na sociedade brasileira.

             Esses dados revelam também a pouca eficácia da política de cotas, pelo menos nos termos em que se colocou até hoje, representando apenas uma conquista formal que não veio acompanhada de condições objetivas que contribuíssem para elevar o nível de politização, participação e de organização política das mulheres.

             De todas as barreiras à participação das mulheres, a da política é, sem dúvida, a mais difícil de transpor, exatamente por ser a política o espaço das decisões e do poder e, como tal, tem sido privilégio dos homens.

             Enquanto essa situação perdurar, não podemos dizer que vivemos em uma verdadeira democracia. Por isso, é premente a realização de
ampla e profunda Reforma Política que, entre outras mudanças, torne efetivas, além da democracia representativa, a democracia direta e a participativa, como condição para se corrigirem as imperfeições e distorções do sistema político brasileiro e a grave crise de representação que vivemos atualmente.

             Em síntese, a política é o meio mais eficaz para se transformar a realidade no interesse das mulheres e dos demais setores da sociedade excluídos das decisões políticas. Por isso, devemos nos inserir no mundo da política, o que exige formação e preparo para enfrentarmos discriminação e preconceito por ousarmos disputar o poder com os homens, campo esse que, historicamente, tem sido quase que, exclusivamente, território deles. Esse é um dos maiores desafios que temos a superar na militância político-partidária.

             Com efeito, o número de mulheres que militam na política ainda é muito pequeno por vários motivos. Primeiro, porque a maioria ainda não rompeu com os condicionamentos culturais, sociais e econômicos que dificultam seu acesso à política e às esferas de poder. Segundo, porque o machismo presente nas relações familiares, no mundo do trabalho, nos partidos políticos, nas organizações religiosas, na sociedade em geral contribui para excluir as mulheres dos espaços de poder, desestimulando, assim, sua participação política. Terceiro, porque a maioria das mulheres ainda não tomou plena consciência do seu papel na sociedade; dos seus direitos de cidadania e da participação política como condição para garantir seus direitos.

             Com vistas a estimular essa participação, é preciso promover a formação e a capacitação política das mulheres e propiciar-lhes condições objetivas  para que possam disputar em igualdade de condições com os homens os espaços de poder. As cotas referentes aos recursos do Fundo Partidário e ao tempo gratuito de rádio e televisão dos partidos, destinados às mulheres, colaborarão nesse sentido.

             A sociedade brasileira certamente ganharia muito com a inclusão de mais da metade da população na vida política, pois passaria a contar com a participação das mulheres nas decisões e na busca de soluções para os graves problemas do país, além de contribuir para elevar o nível de democracia e de civilização no Brasil.

7.  Após a aprovação da chamada mini-reforma, quais são os próximos passos, especialmente, no que diz respeito à participação das mulheres na política?

             Entre outros, os próximos passos poderiam ser os seguintes:
·         Institucionalizar, estruturar e fortalecer as organizações pluripartidárias de mulheres, tais como: Os “Comitês Multipartidários de Mulheres” e o “Fórum Nacional de Mulheres de Instâncias de Partidos Políticos”.
·         Definir, conjuntamente, através das organizações pluripartidárias, estratégias de intervenção das instâncias de mulheres em seus respectivos partidos, tendo em vista o cumprimento das determinações da Lei nº 12.034, de 29 de setembro de 2009, particularmente as referentes às cotas.
·         Analisar a possibilidade e a conveniência de se criarem um Fundo pluripartidário e uma entidade de mulheres com a finalidade de gerenciarem os recursos provenientes dos repasses referentes aos 5% do Fundo Partidário.
·         Construir uma proposta unitária para aplicação da Lei sobre cotas, a ser apresentada e defendida, junto às direções dos partidos políticos, pelos organismos pluripartidários de mulheres.
·         Analisar a possibilidade e a conveniência de se criar uma entidade com a finalidade de promover a formação política de mulheres, com caráter pluripartidário e de educação permanente, visando capacitar mulheres para a militância política, a disputa, a conquista e o exercício do poder, numa  perspectiva de gênero.

8. Como a senhora avalia a atuação da “Comissão Tripartite” instituída para a revisão da Lei 9.504/1997?

             Foi muito importante sobretudo porque construiu um anteprojeto de reforma política de consenso entre representantes do Governo, do parlamento e dos movimentos de mulheres, incorporando várias propostas que tramitam na Câmara dos Deputados, algumas, inclusive, de autoria do Governo, outras, de Deputados e ainda outras  da Frente Parlamentar pela Reforma Política com Participação Popular.

             Contudo, os trabalhos da Comissão foram atropelados pela Câmara dos Deputados que criou, sem qualquer discussão, um grupo de Trabalho, composto por representantes de todos os partidos com bancadas na Casa, para elaborar um projeto de mini-reforma eleitoral.

             A bancada feminina da Câmara reinvidicou e conseguiu que duas representantes suas (uma titular e uma suplente) integrassem o grupo de Trabalho para apresentarem e defenderem as propostas de interesse das mulheres.

             O fato é que as Deputadas que representavam a bancada ficaram isoladas no Grupo e as propostas que apresentaram sofreram forte resistência dos outros Deputados. As propostas das mulheres não contaram sequer com o apoio dos representantes daqueles partidos que, por presuposto, seriam solidários com a  luta das mulheres por seus direitos políticos.

             Da parte dos representantes dos partidos de direita, houve, inclusive, até  atitudes agressivas e manifestações de resistência e de intolerância. O fato é que, quando se trata de disputa de poder, os homens se aliam e se colocam acima de quaisquer divergências político-ideológicas, de modo a impedir que as mulheres tenham acesso aos espaços de poder.

             Apesar disso e graças  à atuação das bancadas femininas e “Comissão Tripartite”, junto ao Grupo de Trabalho e às lideranças partidárias da Câmara e do Senado, foram aprovadas as cotas já mencionadas, o que representou apenas uma conquista limitada frente ao que reivindicavam as mulheres.

             Finalmente, outro aspecto positivo a registrar a respeito da atuação da “Comissão Tripartite” foi o fato de  ter elaborado uma proposta de Reforma Política que, além dos aspectos relacionados às questões de gênero, aborda vários outros, o que torna a proposta abrangente como convêm a uma verdadeira reforma política, capaz de corrigir as imperfeições e de eliminar as graves distorções do sistema político brasileiro.

             Por tudo isso, minha avaliação do trabalho realizado pela “Comissão Tripartite” é positiva e considero que deveria ter continuidade para estimular o debate da proposta pela sociedade, pois só assim se acumulará a força política necessária para que o próximo Congresso Nacional seja pressionado a discuti-la e votá-la.        


            



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