Discursos

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Memória da Associação Profissional dos Assistentes Sociais (APASSP) por Luiza Erundina

*Texto divulgado em 21/08/2009 


1. Analise o contexto socioeconômico e político no Brasil na década de 1970 e suas implicações para o Serviço Social.

A década de 1970 no Brasil foi marcada por grave retrocesso institucional em consequência do golpe militar de 1964 que afetou profundamente a realidade do país em todos os aspectos, principalmente, no aspecto político, com o fim da democracia e a instauração do regime militar que se estendeu por duas longas décadas.

Na ditadura, as liberdades democráticas foram suprimidas e os direitos humanos, violados, o que provocou firme e corajosa resistência de amplos segmentos da sociedade, especialmente, os estudantes, liderados pela UNE, e dos trabalhadores, cujos sindicatos foram fechados, suas lideranças, fortemente reprimidas, e os mandatos dos seus dirigentes, cassados. Dentre estes, Assistentes Sociais e algumas de suas entidades de classe.

O mesmo se deu com os partidos políticos de esquerda e de oposição ao regime, os quais foram jogados na ilegalidade e seus dirigentes e principais lideranças presas ou forçadas a fugir para o exílio, enquanto outros entraram na clandestinidade dentro do próprio país.

No aspecto econômico, a situação política criou as formas de apropriação do excedente gerado e as condições favoráveis à reprodução e expansão do capital.

Com efeito, como ocorre com todo país de economia dependente, a maior parte do excedente produzido no Brasil, durante aquele período, foi transferida para os países desenvolvidos do primeiro mundo, quer sob a forma de lucros e/ou de pagamento de juros e serviços da crescente dívida externa.

Além disso, o Brasil passou a importar tecnologia de capital intensivo para incorporar ao seu processo produtivo que, se por um lado, aumentava significativamente a produtividade do trabalho, por outro, gerava desemprego em massa.

Assim, a mão-de-obra excedente passou a migrar para os grandes centros urbanos, cujo mercado de trabalho formal não tinha capacidade para absorver o grande contingente de desempregados, além de tratar-se de trabalhadores sem a qualificação e a experiência exigidas pelo mercado de trabalho urbano-industrial.

Outro aspecto da economia brasileira da década em análise que vale destacar, refere-se ao forte incremento dos investimentos estatais que contribuiu muito para a valorização do capital e representou poderoso suporte à acumulação privada do excedente produzido.

Assim, houve marcante presença do Estado na economia brasileira, naquele período, tendo o setor público participado na formação de nada menos do que 50% do capital fixo do país. Prova disso é o fato de que das 173 empresas estatais existentes em 1975, 123 foram criadas depois de 1967.

Ademais, a adoção desse modelo de economia agravou, sobremaneira, a situação social com o aumento da pobreza que atingia a maioria da população em conseqüência, não só do desemprego em massa, mas também dos baixos salários. Atente-se, pois, para estes dados: entre 1968 e 1978 a produtividade do trabalho no Brasil cresceu 32%, em termos reais, enquanto a média dos salários, no mesmo período, decresceu 15%. A comparação entre esses dois indicadores demonstra, portanto, o fantástico processo de acumulação registrado no país, naquele período, e explica a precarização das condições de vida dos trabalhadores brasileiros.

Foi a época do chamado “milagre brasileiro” que, como disse Lúcio Kowarich, “foi um milagre feito por um santo perverso”, pois tirou dos pobres para dar aos ricos, ou seja, os ricos ficaram mais ricos e os pobres, mais pobres ou miseráveis.

Acrescente-se a esse quadro, o fato de não existir, naquele tempo, políticas sociais para atender as demandas coletivas. Havia apenas ações pontuais com caráter assistencial e em níveis mínimos de subsistência nas áreas de saúde, educação e assistência social.

Ressentia-se, também, da falta de investimentos públicos em infra-estrutura urbana de transporte, saneamento básico, de habitação popular, entre outros, o que contribuía para agravar, ainda mais, as condições de vida da população nas cidades, onde proliferavam as favelas, os cortiços e a ocupação dos baixos de viadutos por trabalhadores que, por não terem emprego, iam “morar” nas ruas em situação degradante e de total desrespeito aos direitos humanos.

Tomando como indicador de pobreza no Brasil a renda familiar, o PNAD/76 registrou que, naquele ano, mais de 45% das famílias brasileiras tinham renda familiar de até 2 salários mínimos, ou seja, cerca de 49,5 milhões de pessoas, e quase metade dessas famílias tinham renda inferior a um salário mínimo, o que configura uma situação de pobreza absoluta.

Outros dados igualmente estarrecedores demonstram com maior evidência a perversa concentração de renda no país na década de 1970, tais como: os 10% mais ricos da população detinham 50,56% da renda total, enquanto os 10% mais pobres ficavam com menos de 1% da renda. Ademais, 5% dos mais ricos ficavam com cerca de 39% da renda gerada anualmente no país e, em termos da renda média mensal, a diferença era de 40 vezes maior do que a renda de um dos 50% mais pobres.

Diante desse quadro, a luta pela sobrevivência tornou-se a maior preocupação de mais da metade da população brasileira que, sem outra alternativa e pressionada a compensar a queda do poder aquisitivo do salário, 
cria artifícios de suplementação de renda, tais como: aumento da jornada de trabalho; trabalho infantil; biscates, etc., gerando desgaste da força-de-trabalho submetida a extrema exploração.

Aos poucos a população foi tomando consciência dos seus direitos e de sua força e começou a se mobilizar para exigir mudanças. Foi quando começaram a surgir diversos movimentos populares para reivindicar políticas públicas destinadas a atender seus direitos sociais e de cidadania. Lembraria, por exemplo, o movimento contra a carestia; a luta dos moradores de favelas por ligação de água e luz em seus barracos e de resistência contra os despejos das áreas que há muito tempo ocupavam; o movimento por creches; por serviços de saúde; por moradia; por melhorias urbanas; e tantas outras lutas que marcaram a vida de homens e mulheres do povo, naquele período, e que os tornaram sujeitos políticos, construtores da sua própria estória.

Os assistentes sociais tiveram participação destacada na construção desses movimentos e no encaminhamento de suas lutas, como profissionais comprometidos com os interesses populares, ao mesmo tempo em que se organizavam para reivindicar seus próprios direitos como trabalhadores assalariados.

Por isso, foram vítimas de desconfiança e de perseguição dos agentes da ditadura que os vigiavam nos locais de trabalho e, vários deles, foram punidos com demissão. Os “olheiros” da ditadura sabiam da influência desses profissionais junto à população, conscientizando-a sobre seus direitos e estimulando-a a lutar por eles.

2. Fale sobre sua inserção profissional e política na época, e de que forma contribuía para o Serviço Social brasileiro e latino-americano.

Sabemos que nossa prática profissional está sujeita a limitações impostas pelas instituições onde trabalhamos e que, para superá-las, precisamos nos unir e nos organizarmos politicamente.

Foi neste sentido que lutamos pela reativação da Associação Profissional dos Assistentes Sociais de São Paulo – APASSP, cujas atividades estiveram completamente paralisadas, durante o período de 1970 a 1977, em decorrência do regime militar.

Com o agravamento da situação política a partir de 1968, quando foi decretado o AI-5, ocorreu enorme retrocesso dos movimentos sociais, atingindo, inclusive, o processo de organização dos assistentes sociais.

Graças à heróica luta dos trabalhadores e trabalhadoras e à brava resistência dos movimentos sociais, aos poucos foram sendo reconquistados o direito e a liberdade de organização e de participação política.

No seio desses movimentos, estavam os assistentes sociais mais combativos e comprometidos com a luta pela redemocratização do país. Embora minoria, foram capazes de desencadear amplo processo de mobilização da categoria em torno de seus interesses específicos e dos interesses gerais dos trabalhadores.

Um dos instrumentos utilizados nesse processo foi a Associação Profissional dos Assistentes Sociais de São Paulo – APASSP, reativada em 1978, ano em que elegeu uma diretoria, formada por um grupo de Assistentes Sociais, sendo eu a presidente, para um mandato de dois anos.

As eleições ocorreram após cinco meses de trabalho árduo, realizado por uma “Junta Governativa” que conseguiu filiar 700 dos 7.000 profissionais então existentes no Estado de São Paulo e, desses, apenas 200 compareceram para votar.

No começo, a Associação funcionou, provisoriamente, na sede do Conselho Regional de Assistentes Sociais – CRASS/SP, dando início ao trabalho de organização da entidade e de articulação e mobilização da categoria. Nesse sentido, promoveu várias atividades e desencadeou lutas importantes que envolveram os Assistentes Sociais de São Paulo e de outros Estados.

Uma das lutas importantes que, na época, mobilizou a categoria foi a que se opôs ao Decreto Municipal nº 15.086, de 6 de junho de 1978, do então prefeito biônico Olavo Setúbal, do PDS, que transferia para as Administrações Regionais a responsabilidade pela guarda e fiscalização das áreas livres da Prefeitura, determinava o uso de força policial e a intervenção dos Assistentes Sociais da Supervisão Regional de Serviço Social para impedir a ocupação das áreas vazias. A APASSP desencadeou, então, um movimento contra o decreto, denunciando seu caráter injusto e repressivo, e de apoio aos profissionais que se recusavam a cumprir o que ele determinava.

Participaram dessa luta, além dos Assistentes Sociais, profissionais de outras categorias e os próprios moradores das favelas ameaçados de despejo ao se cumprir o referido decreto.

O movimento desencadeado pela Associação teve ampla repercussão junto à opinião pública e estimulou o processo de organização dos moradores das favelas de São Paulo. Pouco a pouco, foram surgindo as Associações de Moradores de Favelas que passaram a encaminhar a luta em defesa do direito à moradia e que resultou em um importante movimento  em torno dessa questão e que se estendeu por todo o país.

Mais uma iniciativa importante protagonizada pela APASSP, junto com outras seis entidades, foi o I Encontro Paulista de Entidades Profissionais, realizado de 16 a 20 de agosto de 1978, para discutir temas de interesse de todas elas e buscar soluções para problemas comuns às mesmas.

Um outro evento que contou com ativa participação da APASSP foi o I Encontro Nacional de Entidades  Sindicais de Assistentes Sociais, oportunidade em que se discutiram assuntos de relevante interesse para o fortalecimento da organização política dos profissionais de Serviço Social, realizado nos dias 25 e 26 de agosto de 1978, do qual participaram representantes de sindicatos e associações de alguns Estados da federação.

Um II Encontro Nacional de Entidades Sindicais de Assistentes Sociais realizou-se de 2 a 4 de novembro daquele mesmo ano, também em Belo Horizonte, e que contribuiu significativamente para a compreensão do papel das entidades de representação profissional na sociedade brasileira. O Encontro reuniu um número maior de entidades em relação ao primeiro e representou um avanço ao definir uma linha política para orientar a atuação profissional.

Constatou-se, naquele Encontro, que a maioria das entidades de assistentes sociais fora criada antes de 1964, ano em que suas atividades foram paralisadas pelo regime militar e retomadas apenas a partir de meados da década de 70, quando a conjuntura política começou a mudar.

Ainda em 1978, a APASSP criou um núcleo seu na Baixada Santista e uma comissão de assistentes sociais da Prefeitura Municipal de São Paulo para atuar junto à APASSP. Apoiou, também, movimentos mais gerais da sociedade, tais como: Movimento Contra a Caristia; Movimento de reivindicação salarial dos funcionários do Hospital dos Servidores Públicos do Estado; Movimento dos artistas contra a censura e pela liberdade de manifestação, expressão e organização; e Movimento dos estudantes residentes na Casa Universitária pelo direito à moradia.

O ano de 1979 foi marcado pela luta dos trabalhadores na defesa dos seus direitos. Operários, profissionais liberais, funcionários públicos e intelectuais se uniram contra a política de arrocho salarial, na luta por melhores condições de vida e pelo direito de participação política. A APASSP participou ativamente de todas essas lutas.

Após a experiência das greves setoriais em 1978 no serviço público estadual, organizou-se, em São Paulo, a Campanha Salarial Unificada dos Serviços Públicos, que se constituiu  em um canal de expressão das reivindicações dessa categoria de trabalhadores, privada de direitos sindicais e sacrificada pela política de contenção salarial imposta pela elite dirigente.

Como assistente social da Prefeitura de São Paulo integrei o Comando Geral da greve dos funcionários municipais e a Comissão de negociação, representando também  a categoria dos assistentes sociais como presidenta da APASSP. Assumi, naquele momento, a liderança do movimento grevista do funcionalismo municipal, o que me possibilitou uma extraordinária experiência de participação política, e para a APASSP, a participação na greve trouxe resultados muito positivos, pois levou à mobilização e participação dos assistentes sociais diretamente interessados nas  reivindicações, além de gerar um valioso saldo de consciência política.

A APASSP integrou também a Comissão Permanente de Mobilização, formada por quarenta entidades, com o objetivo de apoiar os trabalhadores em greve no ABCD, em março de 1979, quando ocorreu a intervenção do Ministério do Trabalho nos sindicatos daquela região.

Nos dias 21, 22 e 23 de setembro de 1979, realizou-se na cidade de São Paulo, o III Encontro Nacional de Entidades Sindicais de Assistentes Sociais, do qual participaram 21 entidades de todo o país.O Encontro discutiu temas relevantes e aprovou importantes diretrizes para orientar a atuação profissional e política naquela conjuntura.

Vale destacar, ainda, outro resultado valioso do III Encontro que foi a criação da Comissão Executiva Nacional de Entidades Sindicais de Assistentes Sociais (CENEAS), formada por cinco entidades, representando as cinco regiões do país e que seriam  responsáveis pelo encaminhamento das questões de interesse da categoria em suas respectivas regiões. A coordenação da CENEAS ficou com a APASSP e  reuniu as entidades sindicais da categoria de todo o país, com uma perspectiva de ação conjunta e articulada.

Um dos pontos altos do III Encontro foi a posição que assumiu sobre o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS) e que resultou em um Manifesto, assinado pelas 25 entidades presentes no Encontro, denunciando a organização do III Congresso, nos seguintes termos:

“1. A preparação do III CBAS, que não garantiu a consulta aos assistentes sociais, através de discussões amplas e democráticas;

2. A forma de organização, que impediu a participação maciça dos profissionais, pois o preço cobrado para a inscrição no congresso e as demais despesas (passagens, estadia e alimentação), não condizia com a realidade salarial da maioria dos assistentes sociais brasileiros;

3. A limitação à participação dos estudantes de Serviço Social, principalmente daqueles próximos à conclusão do curso, que, não só têm interesse e necessidade de discutir com a categoria, como podem contribuir no debate sobre os rumos da profissão na realidade brasileira;

4. A definição do tema, considerando que os assistentes sociais não participaram da sua escolha, não podendo assegurar a linha, as diretrizes e os posicionamentos que contribuiriam para a busca de uma posição política coerente com o momento histórico; 

5. O repúdio ao convite de honra feito aos representantes do governo, principalmente ao ministro do Trabalho, Murilo Macedo, que assume atitudes patronais e repressivas, tendo determinado a intervenção nos sindicatos numa tentativa de impedir a emancipação dos trabalhadores. Tais medidas e outras punições atingiram duramente líderes sindicais em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Distrito Federal, decorrentes da política governamental que reprime manifestações populares”.

Em síntese, minha inserção profissional e política, na época, se deu no trabalho sindical e político como presidenta da Associação Profissional dos Assistentes Sociais de São Paulo- APASSP, e da Comissão Executiva Nacional de Entidades de Assistentes Sociais–CENEAS, conforme relato acima; na experiência profissional, como Assistente Social da Prefeitura Municipal de São Paulo, e, na área acadêmica, como professora de Serviço Social em várias faculdades do Estado de São Paulo, tais como: PUC/SP, FMU/SP, Faculdade Paulista de Serviço Social, entre outras.

Acrescente-se, outrossim, que tanto a militância sindical como a experiência profissional, no campo da prática e na área acadêmica, foram marcadas por dimensão coletiva e por forte vinculação com os movimentos sociais e populares, além do real compromisso com a luta do povo brasileiro em defesa da democracia e dos direitos de cidadania.

Além disso, a inserção profissional e política, nas décadas de 1960 e 1970, me impulsionou a assumir a militância político-partidária, a partir da década de 1980, sem, contudo, abdicar do projeto profissional que, até hoje, inspira e influencia minha atuação política.

Enfim, é possível afirmar que,modestamente, contribui, sim, para o Serviço Social brasileiro e latinoamericano.

3. Que relevância teve a militância de alguns Assistentes Sociais vvvinculados a organizações de esquerda para além dos espaços da categoria profissional naquele momento histórico.

Antes de tudo, contribuiu para criar uma outra imagem do profissional de Serviço Social junto aos trabalhadores e à sociedade em geral.

Tido, tradicionalmente, como alienado e instrumento a serviço da ordem e dos interesses das classes dominantes, passou a ser visto e considerado como um aliado dos que lutavam contra o regime militar e em defesa dos interesses populares.

A militância política desses assistentes sociais e seu engajamento concreto nas lutas reivindicativas dos trabalhadores e dos segmentos excluídos da sociedade, contribuíram para afirmar a dimensão político-ideológica  da profissão. Também ajudou na articulação dos Assistentes Sociais com profissionais de outras áreas, ampliando e fortalecendo, assim, sua própria atuação e a daqueles com os quais militavam e participavam das mesmas lutas.

Ajudou no processo de politização dos assistentes sociais menos politizados e contribuiu na organização política da categoria, participando da criação de associações profissionais e sindicatos como instrumentos de luta por direitos e de conquista de espaço de ação política na sociedade.

Em síntese, a militância dos Assistentes Sociais vinculados a organizações de esquerda,  nas décadas de 1960 e 1970, foi muito importante como presença da categoria nas lutas que marcaram aquele momento histórico da vida do país e que criaram as condições para as mudanças e avanços, cujos efeitos até hoje se fazem sentir.

4. Avalie o processo de organização do III CBAS e o significado teórico-político de sua estrutura.

No 3º Encontro Nacional de Entidades Sindicais de Assistentes Sociais, acima referido, foi feita uma avaliação pelas entidades presentes naquele encontro, chegando à  conclusão de que a organização do Congresso foi feita à revelia da categoria e sequer suas entidades  foram consultadas a respeito, não obstante estarem, naquele momento, bastante mobilizadas e ativas na defesa dos interesses profissionais  e engajadas na luta política dos trabalhadores e da sociedade brasileira em geral pela redemocratização do país.Consideraram, portanto, o processo de organização do Congresso  muito autoritário e fortemente centralizado pelo CFAS e pelos Conselhos Regionais de Assistentes Sociais.

Quanto à sua estrutura temática não oferecia qualquer perspectiva de reflexão crítica do ponto de vista teórico e, muito menos, de posicionamento político a respeito das políticas sociais do governo. Ao contrário disso, as mesas de debate foram compostas quase que exclusivamente por representantes dos governos federal, estaduais e municipais e por técnicos e especialistas sintonizados com o  regime, focados na  promoção das políticas oficiais e da propaganda das mesmas.

Além do caráter oficialesco e propagandístico do Congresso, ficou evidente também a preocupação em dar uma aparência pomposa ao evento, o que certamente contribuiu para elevar seus custos e, consequentemente, para o alto preço das inscrições. Assim sendo, restringiu muito o acesso dos assistentes sociais que viviam, na época, difícil situação de desemprego e de arrocho salarial, como ocorria com a imensa maioria dos  trabalhadores brasileiros.

Portanto, a conclusão que se tira é a de que a concepção que norteou a organização e a estruturaçao do III CBAS, bem como sua  linha política demonstram o enorme distanciamento, por parte dos seus organizadores, do conjunto da categoria; a subserviência aos donos do poder e de total alheiamento e descompromisso com a luta de resistência à ditadura e pela reconquista das liberdades democráticas, travada heroicamente pelo povo brasileiro.

Ainda bem que um segmento representativo da categoria, sob a orientação de lideranças politizadas e comprometidas com as mudanças reclamadas pelos assistentes sociais e sintonizadas com os anseios do povo brasileiro, reagiu e provocou uma ruptura que alterou, profundamente, os rumos da história do serviço social no Brasil.

5. Comente sobre o processo que permitiu e culminou no movimento que deu origem ao termo “Congresso da Virada” e qual foi sua participação nesse processo.

O III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado de 23 a 28 de setembro de 1979, no Palácio das Convenções do Parque Anhembi, na capital de  São Paulo, reuniu cerca de 2.500 Assistentes Sociais de todo o país e frustrou as expectativas dos participantes pelo seu caráter autoritário e oficialesco. Se não fosse a presença ativa e organizada das entidades sindicais da categoria, o Congresso teria se esvaziado já no segundo dia.

 Essas entidades realizaram, paralelamente à programação oficial, uma assembléia da qual participaram aproximadamente 600 congressistas, quando, em um clima tenso e de grande insatisfação, denunciaram a forma autoritária como o Congresso fora organizado e os rumos  que tomou, defendendo e fazendo propaganda das políticas sociais dos governos federal, estaduais e municipais.Foi uma demonstração de subserviência explícita ao regime autoritário, vigente no país, naquela época.

Por decisão unânime da assembléia paralela, as lideranças sindicais tomaram a direção do Congresso na abertura da plenária geral do segundo dia e, no início dos trabalhos, a Mesa Diretora propôs e foi aprovada a destituição
da Comissão de Honra  do Congresso, composta à revelia da categoria, pelo então Presidente da República, General João Batista Figueiredo; o Ministro do Trabalho, Murilo Macedo, (que havia cassado a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, cujo presidente era Luiz Inácio da Silva); o Ministro da Previdência, Jair Soares; o Governador de São Paulo, Paulo Salim Maluf, e o Prefeito da Capital, Antônio Salim Curiati.

Também por decisão soberana da Assembléia a Comissão de Honra passou a ser integrada por representantes dos dirigentes sindicais cassados; do Comitê Brasileiro pela Anistia; do Movimento Contra a Carestia; da Associação Popular de Saúde; da Frente Nacional do Trabalho,em homenagem aos trabalhadores brasileiros e todos os que morreram na luta em defesa da democracia.

A Assembléia aprovou, ainda, o seguinte Manifesto:

“1. Considerando o caráter antidemocrático deste III CBAS, cujos procedimentos foram decididos pela comissão executiva sem qualquer discussão com a categoria, nós, Assistentes Sociais, apresentamos nosso repúdio e propomos que o próximo congresso seja assumido pelas entidades realmente representativas da categoria, ou seja, nossos sindicatos e associações de classe;

2. Considerando que a política social é um reflexo do modo de produção, e que sua abordagem deve ser feita de forma a possibilitar uma visão global que permita aos profissionais discutir as políticas setoriais referentes aos diversos campos de atuação e as possíveis inter-relações entre elas, propomos que o painel “O profissional na política social” seja apresentado dentro desta visão global;

3. Considerando não ser correta a separação entre profissionais e estudantes de Serviço Social, visto que têm objetivos e anseios comuns e pelos quais lutam juntos, repudiamos a restrição à sua participação, limitada apenas a dois estudantes por faculdade;

4. Considerando a conjuntura brasileira e a retomada pelos trabalhadores da luta por melhores condições de vida e de trabalho, propomos que as despesas com as atividades sociais do congresso sejam canceladas e destinadas ao Fundo de Greve dos trabalhadores brasileiros;

5. Considerando que o Assistente Social é um trabalhador assalariado, propomos a discussão de seus salários e as condições de trabalho durante o congresso, com vistas a estimular sua participação na luta de todos os trabalhadores brasileiros;

6. Considerando a relação da prática dos Assistentes Sociais com as lutas mais gerais da população, propomos a participação de representantes das comunidades e de lideranças sindicais em todas as mesas e painéis do congresso”.

O III CBAS realizou-se em um momento de intensa mobilização social e política  e de avanço da luta contra o regime militar e pelos direitos sociais e políticos do povo brasileiro.

A assembléia de encerramento contou com a presença da Comissão de Honra, eleita democraticamente pelos congressistas ocasião em que várias Moções importantes foram aprovadas, destacando-se, entre outras, a de repúdio à intervenção nos sindicatos e  prisão de líderes sindicais; contra o projeto de Anistia restritiva e contra a devastação e ocupação da Amazônia.

Convidado de honra do III CBAS, representando os trabalhadores brasileiros, o líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva participou do ato de encerramento do Congresso, quando falou aos Assistentes Sociais. Foi um discurso político, dizendo ter se surpreendido ao ver os profissionais assistentes sociais engajados na luta em defesa da população.Falou do compromisso desses profissionais com os interesses populares e com a democracia. Acrescentou ainda que imaginava tratar-se de um Congresso de uma pequena burguesia, mas que tinha ficado “fascinado por ver a coragem com que as pessoas se colocavam diante do microfone e criticavam, sem nenhum receio, os erros cometidos, seja pelos patrões, seja pelo governo, seja até mesmo por colegas. Democracia é isso”. E concluiu com a seguinte aclamação: “Haverá um dia em que trabalhadores braçais, Assistentes Sociais, intelectuais, políticos; todos nós, juntos, nos levantaremos sem um pingo de medo, mas também sem um pingo de ódio, e na praça pública  gritaremos alto e bom som: Povo sofredor, secai vossas lágrimas! Escravos, levantai-vos de vossa prostração!”

Nós que tivemos o privilégio de protagonizarmos aquele momento temos consciência do seu significado histórico e político; da propriedade do que se convencionou chamar, entre os assistentes sociais, de “Congresso da Virada”. Expressão esta que, cada dia, ao longo dos últimos trinta anos, adquire mais força e sentido e que soa como um alerta para que estejamos sempre atentos às exigências da realidade e fiéis ao compromisso profissional de servirmos aos excluídos da sociedade e de contribuirmos na construção de uma sociedade justa e igualitária.

Minha participação no processo de construção do III CBAS foi uma decorrência da longa trajetória que percorri, junto com meus colegas de profissão, desde que sai da Paraíba, fugindo da perseguição política da ditadura, e chegando a São Paulo em 28 de janeiro de 1971. De que me acusavam, então? Do crime de tentar ajudar os trabalhadores rurais a se conscientizarem dos seus direitos e a se organizarem para lutar por esses direitos.

Trabalhando como assistente social nas favelas da periferia de São Paulo, onde se amontoavam os migrantes nordestinos, arrancados de suas raízes e expulsos pelo latifúndio, tive que enfrentar um outro desafio. Dessa vez, o de tentar organizar esses trabalhadores para travarem a luta pelo direito a moradia. No campo, a luta era por terra para trabalhar; na cidade, à luta era por terra para morar. E o inimigo era e é sempre o mesmo: a apropriação privada dos meios de produção, dogma do capitalismo.

Ao trabalharmos com os pobres e procurar abrir-lhes os olhos, ajudando-os a se organizarem, o cerco voltou a se fechar contra nós nos espaços institucionais onde exercíamos a profissão.

Daí, então, tivemos que nos organizarmos políticamente, buscando criar outros espaços de luta profissional. Foi neste sentido que nos empenhamos na reativação da Associação Profissional dos Assistentes Sociais de São Paulo-APASSP, ponto de partida para a organização e articulação política dos Assistentes Sociais em todo o país, com a criação de associações profissionais e sindicatos da categoria em vários Estados e que passaram a ser coordenadas por uma entidade nacional, a Coordenação Executiva Nacional de Entidades de Assistentes Sociais-CENEAS.

Portanto, minha participação no processo que culminou no movimento que deu origem ao “Congresso da Virada” se deu na condição de Presidenta da APASSP e da CENEAS.

6. Este item foi respondido no item anterior ( item 5).

7. Analise os impactos do “Congresso da Virada” para a renovação do Serviço Social brasileiro e construção do Projeto Ético-político profissional.

O Serviço Social como prática social e como profissão é resultado do processo sócio-cultural em cada espaço e em determinado contexto histórico, ou seja, é produto histórico-social. Assim sendo, assume feições e peculiaridades que se expressam no seu referencial teórico e no projeto ético-político profissional, ao mesmo tempo em que recria e atualiza seu instrumental de análise e de intervenção na realidade. Tudo isso é  pressuposto da ação profissional como práxis social.

O Serviço Social, a meu ver, foi uma das profissões mais impactadas pelos acontecimentos que marcaram os últimos trinta anos da nossa história. Antes de tudo, porque sofreu as mudanças ocorridas nesse período, e por causa da ruptura que realizou entre seu passado e seu presente.

Antes da década de 1980, a atuação profissional dos assistentes sociais se caracterizava, sobretudo, por posições reativas e de adaptação passiva à realidade.

A partir do final da década de 1970 e início da década de 1980, o Brasil vivia um processo sócio-político que exigia posicionamento político e afirmação clara de compromisso com relação aos interesses sociais em disputa. De um lado, os interesses das classes dominantes, representados e defendidos pelo Estado e suas instituições. De outro, os interesses dos trabalhadores e da maioria da população excluída econômica, social, cultural e políticamente. E os Assistentes Sociais, por sua vez,  na condição de agentes institucionais operadores das políticas sociais públicas, tinham a função de mediar esses interesses contraditórios e de administrar os conflitos gerados.

Foi exatamente essa realidade da profissão que começou a ser questionada pelos assistentes sociais comprometidos e engajados no processo político que culminou com o fim da ditadura militar e a redemocratização do país.

A ruptura se deu com o “Congresso da Virada”, como resultado do acúmulo de forças que vinha sendo construído ao longo do processo de organização política da categoria e de preparação do III CBAS.

Esse Congresso, portanto, foi um marco na história do Serviço Social no Brasil, a partir do qual o projeto profissional começou a ser repensado, não só por força das transformações em curso na sociedade brasileira, mas também em razão das contradições existentes no seio da própria profissão.Contradições essas que se explicitaram de forma aguda,ao se confrontarem  durante os debates realizados no Congresso.

Ao se comemorar os 30 anos do “Congresso da Virada”, que provocou a renovação do Serviço Social e a construção do projeto ético-político profissional, uma reflexão precisa ser feita, tanto pelos que protagonizaram aquele momento histórico, como pelos que têm a responsabilidade pela construção do projeto profissional no presente, visto  que o ciclo histórico que deu origem ao projeto profissional em questão, entrou em uma fase de esgotamento que tem como sinal a atual crise político-institucional, colocando novas exigências e desafios para os sujeitos políticos coletivos que devem repensar sua ação em todos os seus aspectos.

Cumpre, pois, ao Serviço Social, como uma das expressões da sociedade brasileira e enquanto área de conhecimento e de ação profissional, atualizar seu referencial teórico e reciclar seus instrumentos de análise e de intervenção, com vistas a adequá-los às novas  exigências de uma realidade complexa e em acelerado processo de mudança.

No que tange aos assistentes sociais, como profissionais e enquanto sujeitos coletivos de ação política, é necessário que repensem sua prática e a contribuição que poderão dar à construção de um projeto político de sociedade, capaz  de consolidar e ampliar as conquistas democráticas e de fazer do Brasil uma nação justa, livre e soberana.

Finalmente, que a comemoração dos 30 anos do “Congresso da Virada” seja uma oportunidade para se fazer um balanço dessa longa trajetória; refazer caminhos e traçar perspectivas para o futuro, movidos pelo mesmo sonho e pela mesma utopia que inspiraram os que construíram os alicerces dessa história que hoje celebramos.

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